terça-feira, 6 de julho de 2010

DEMOCRACIA DO LIXO

Você notou que, sorrateiramente, políticos, empresários, legisladores, comentaristas, fiscais tratam o cidadão como simples consumidor. O passageiro que, mediante contrato de prestação de serviço, paga antecipadamente o bilhete que lhe dá direito a viajar no dia e hora combinados, de repente, é um mero consumidor. Consumidor de quê?
Entramos na era e nas cláusulas dos Direitos do Consumidor. As leis que, em princípio, orientam e protegem o cidadão, ordenam e facilitam as relações sociais não têm força suficiente para garantir o cumprimento de contratos.
O cidadão sofre de metamorfose kafkiana. Transmuda-se em paciente de médicos e hospitais, em cliente de lojas, em usuário de serviços públicos, em correntista de bancos. Para todos ele é um consumidor. Os remédios, as batatas, o cartão de crédito, o bilhete, a conta da luz são provas inequívocas de sua nova identidade, além do RG e do CPF que lhe dão direito a consumir.
Democracia perfeita. Somos todos consumidores. Não há rico nem pobre. O branco e o negro são substancialmente consumidores. Em consequência, somos todos elevados à categoria superior de produtores de lixo. O consumidor grã-fino que joga no contêiner quilos de carne, camarão, camisas de grife e botas americanas está no mesmo patamar do consumidor classe-média que atira a lata de cerveja pela janela do carro. Ou do taxista que se desfaz do copinho plástico de café na sarjeta. Ou do fumante inveterado que desocupa o cinzeiro do carro no estacionamento. Ou do pescador que deixa à beira do lago ou do rio garrafas plásticos, sacolas e restos de comida. Ou do caminhoneiro que usa o acostamento da rodovia para formar lixões a céu aberto frequentados por ratos, carcarás e cachorros famintos.
O lixo iguala os consumidores. Democraticamente. Somos todos iguais perante o lixo. Não há distinção de classes, de religião ou de partido. Já é um direito do consumidor produzir lixo e derramá-lo em qualquer parte. As pilhas de entulho descarregado à beira das rodovias do DF, decorados com restos de cerâmica e azulejos de marca, são por acaso dos favelados da Estrutural, bairro da periferia de Brasília?
Na próxima assembleia constituinte os legisladores poderão adaptar o conceito de cidadania à filosofia e à religião do crescimento econômico e declarar democraticamente em seu artigo primeiro:
Todo cidadão brasileiro é um consumidor e como consumidor tem o direito inalienável de produzir lixo, independentemente de sua classe social, credo político ou religioso.
Nenhum consumidor deve ser discriminado pela qualidade ou quantidade de lixo produzido, depositado em contêineres urbanos ou jogado no leito dos rios, á beira das rodovias, nas sarjetas, sobre as calçadas e à sombra das árvores.
O cidadão é antes de tudo um consumidor.

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