quarta-feira, 14 de novembro de 2007

A FLAUTISTA

Ela entrou formosa sob os aplausos de uma assistência seleta. Era uma jovem flautista, com carreira gloriosa iniciada aos cinco anos.
Seus dedos finos ajustaram a flauta dourada, um milésimo de volta, com um movimento delicado. Assoprou duas vezes no orifício, provocando um som leve e apagado.
Ao sinal do pianista fez um gesto com a cabeça, mostrando uma serena concentração na partitura que tinha em frente.
Escolhera um vestido longo e preto, com um discreto decote que escondia o essencial sem negá-lo de todo. Os braços nus naquela noite morna desenhavam contra o fundo escuro a posição de um abraço. Quando balançava o corpo ao ritmo da música, os cotovelos se mostravam torneados e provocantes, ressaltados pela velocidade dos dedos que subiam e desciam, apertando, vez por outra, as chaves metálicas.
Tinha o cabelo longo caído sobre os ombros seminus que dançavam aos movimentos das notas. Mantinha os pés separados, a pouca distância um do outro, suficiente para se equilibrar no balanço que lhe impunha a sonata.
Toda a graça da composição da flautista demorava no lábio inferior jeitosamente estendido ao lado do orifício, sobrepondo-se e contrastando com o dourado da flauta. Quando a música exigia-lhe um sopro continuado, detendo-lhe a respiração por algum tempo, rapidamente deslizava a língua sobre os lábios e aqueles poucos centímetros de carne vermelha ficavam expostos sobre a flauta.
A flautista tocava uma tarantella de Saint Saëns. Não me perguntem de que ano era essa composição. Esqueci. E esqueci também de aplaudir quando a música terminou, apesar da catarata de aplausos da platéia fascinada. Eu havia ficado preso ao lábio inferior da flautista.
E hoje, muitos anos depois, ao ouvir Saint Saëns e lembrando do lábio da flautista, surpreendi-me, só, aplaudindo a tarantella.

Eugênio Giovenardi, autor de EM NOME DO SANGUE, Prêmio Açorianos de Literatura 2003.

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