terça-feira, 27 de novembro de 2007

DIVAGAÇÕES SOBRE AS ESQUERDAS BRASILEIRAS

Graças aos governos de FHC e do PT do Presidente Lula, os vários grupos de esquerda política mostraram, ao conquistar o governo do país, suas nuances com muita transparência.
É arriscado traçar um mapa do território da esquerda brasileira. Uma das dificuldades para essa tarefa geopolítica é o próprio conceito escorregadio da expressão. Esquerda, sinistra, gauche, left wing.
Muitos, há tempos, se perguntam o que é ser de esquerda. Outros afirmam que ela simplesmente acabou ou que nada mais significa.
No mapeamento, é bom evitar princípios éticos e morais da política para não tornar ainda mais difícil a obra.
Algumas categorias saltam aos olhos na paisagem que ora se compõe nos partidos, no Congresso Nacional, no governo do país e na construção da nova sociedade, liderada hoje, supostamente, pela complexa teia da esquerda.
A fronteira entre uma categoria e outra é tênue e gera conflitos insolúveis.

1. A esquerda pragmática se dobra à “real politic” da chamada governabilidade. Negocia, firma alianças, assume compromissos, abre leilões de cargos, dispõe-se a defesas mútuas, compra reeleição e aprovações de MP de interesse eleitoral. O Governo resulta numa mistura, num complexo vitamínico cujos efeitos e responsabilidades são impossíveis de identificar. Confundem até a justiça que, em seus pareceres, desconfia e contradiz as provas da Polícia Federal. Embevecidos, deslumbrados pelo poder ainda tenro, os novos governantes entregam-se a anunciar a descoberta da roda, da lâmpada, do telefone. Nunca se fez no país o que só eles sabem fazer mesmo que, na oposição, fossem contrários ao que agora praticam. Justificam todos os atos administrativos com argumentos sólidos e convicção peremptória. Seu objetivo primordial focaliza o poder e o exerce na perspectiva eleitoral. Perenizar-se no poder faz parte do sonho da esquerda que antes preferia implantar regimes fortes a caminho de uma democracia renovada, reinterpretada. O povo é meta eleitoral. Alimentar as massas é mais importante do que investir em educação. Líderes pedem o favor a seus eleitores estupefatos, que não lembrem quanto disseram ou escreveram no período preparatório à chegada ao poder. O poder exige esquecimento de lições aprendidas nos tempos da resistência e na oposição. FHC pediu que esquecessem seus escritos de professor exilado. Lula declarou que nunca foi socialista nem sabe o que é ser de esquerda.

2. A esquerda nostálgica analisa os fatos de hoje à luz do tempo em que seus membros eram ativistas. Integram-na grupos profissionais bem sucedidos. Acreditam em pressão institucional, representações populares, diálogo com áreas específicas do Governo e com forças conservadoras da sociedade pluralista. Praticam a revisão de métodos, entremeados de “mea culpa” por erros do passado. Pedem perdão à democracia. Não se furtam de reclamar indenizações polpudas por danos morais, psicológicos e políticos, pois arriscaram a vida na guerrilha, na prisão, na tortura para livrar o povo da miséria e do imperialismo.
Defendem a presença da esquerda no poder, cuja função precípua é ocupar-se de programas voltados a aliviar as condições econômicas de pobres e miseráveis. Apresentam sérias restrições à globalização e às privatizações de empresas estatais. A concentração da riqueza em bancos e grandes empresas de informática, comunicação, biolaboratórios é tolerada com reservas e eventuais ataques, mas consideram esses atos econômicos salvadores da inflação e alimentadores da moeda forte. Não dá para resolver tudo num só dia. Seus membros são quase todos de extração católica. Deus fez o mundo em sete dias e a falha original da sociedade está no homem. A busca do homem novo é tarefa cotidiana.

3. A esquerda convertida ao capitalismo social e ao neoliberalismo controlado, próxima à esquerda pragmática, é mais realista que o rei. Ex-comunistas, participantes de grupos revolucionários que lutaram para libertar o país do jugo imperialista, dar cidadania às “massas” e levá-las ao poder, concentram sua ação jornalística, profissional, gerencial, em empresas privadas e públicas ou ministeriais. Atuam na periferia do poder e não participam de decisões de governo. Interpretam favoravelmente e apóiam os êxitos da economia de mercado. Aprenderam a manipular números, cifras, estatísticas, porcentagens comparativas. Têm opiniões respeitáveis, ditas e divulgadas em permanentes entrevistas. Alimentam certezas e dúvidas, próprias e alheias.
Entre seus alvos prediletos estão governantes socialistas de países vizinhos. Não reconhecem o direito desses povos de eleger um indígena num país com maioria esmagadora autóctone, governados durante séculos pela direita que hoje grama na oposição acirrada a medidas constitucionais. Eles são diferentes de nós. No Brasil pode-se eleger um trabalhador metalúrgico, de trajetória popular, nem esquerdista nem socialista, que aprimora o neoliberalismo e amacia as desigualdades sociais com salários mínimos.
É a esquerda confiante, rica, bem instalada em apartamentos ou mansões. Viaja pelo mundo, encanta-se com países desenvolvidos, tem confiança no Brasil-potência. Critica a má gestão e erros administrativos resultantes da incompetência e da inexperiência de ex-companheiros ou novos aliados. Servem de faróis aos navegadores costeiros. Apontam os perigos das águas profundas.

4. A esquerda ambientalista refugia-se na grandeza e na importância da natureza, no fascínio do universo. Embora poucos tenham plantado um pé de couve ou praticado ações concretas para salvar uma nascente de água, propõem atitudes e comportamentos que aproximam a espiritualidade do homem à divindade oculta entre árvores e galáxias. A esquerda ambientalista não é linear. O universo natural é amplo e cabem nele todos os matizes. Há um ramal que atua na instituição não governamental. A defesa e proteção do meio ambiente é um fim em si. Faz parte dos objetivos da organização. Junta ações legislativas e normativas a tarefas pontuais, à conscientização dos cidadãos, fiscalização e controle de decisões governamentais. Aciona o poder público. Festeja vitórias e amarga derrotas, especialmente no campo da urbanização descontrolada e na ocupação destruidora da fauna e da flora por empresas comprometidas com o PIB e com o PAC. A maioria de seus membros não associa o crescimento demográfico à destruição do meio ambiente. O governo e organismos internacionais apóiam e subsidiam, em parte, o funcionamento da vigilância ambiental desses grupos nem sempre homogêneos.

5. A esquerda sindical, associada a movimentos sociais e igrejas, atua na esfera da organização popular e na consciência cidadã. Lutam por resultados práticos: emprego, salários, direitos sociais e trabalhistas, terra, reforma agrária, casa, crédito bancário para consumo. A força de pressão institucional não alcança o poder político de decisões de governo. É uma esquerda tolerada pela esquerda pragmática instalada no governo que a atende em aspectos marginais da economia. Essa esquerda atuante e marginalizada é convidada e prestigiada em reuniões, congressos e seminários de discussão ideológica ou em caso de se legitimar propostas governamentais. Seu discurso é contundente e aplaudido. Opõe-se ao capitalismo e ao neoliberalismo. A luta pela justiça social tem lhe proporcionado enfrentamentos com a força uniformizada do Estado e sofrido não poucas mortes de seus adeptos. Usa o dinheiro do Estado para sobreviver e alimenta a ideologia com a própria resistência carismática, expressa em comportamentos sóbrios, ocupações de terra e órgãos públicos, passeatas e manifestações de grande impacto, especialmente fora do país. A sobrevivência dos movimentos, com grande capacidade de organização, depende, em grande parte, da imensa camada de cidadãos à margem dos êxitos da propalada economia de mercado. Sonham com um país diferente que só eles podem construir. Desfrutam da simpatia de camadas da sociedade, muitas vezes silenciosa, e do apoio de organizações internacionais, inclusive financeiro.

6. A esquerda depressiva e esquizofrênica é marcada pela desilusão e decepção diante da impotência política e ideológica da esquerda no poder ou do anacronismo revolucionário. Sente-se afetada também pelo fracasso de experimentos “comunistas” em países de vanguarda ideológica. Muitos se refugiam na arte, na literatura, na religião, no misticismo. Não se sentem nem de esquerda nem de direita. Criticam com lucidez e severidade os dois lados. Esperam por uma catástrofe ambiental ou política para retomar ideais antigos. Negam-se a ler jornais, a ouvir discursos de outrora companheiros de ideologia. Fecham ouvidos e olhos aos noticiários. A sociedade é um conglomerado de violência, corrupção, esperteza dos políticos, desprezo pela inteligência, mentira pública, crime hediondo, impunidade, vítimas do trânsito, seqüestro. Guarda-se a ilusão de o Brasil ter o melhor futebol do mundo e o mais popular dos presidentes. “Tudo dá enjôo, enfado, desilusão! Chega! Não dá para suportar! Não saio mais de casa”.

7. À esquerda partidária pertencem aqueles que fundaram ou já encontraram o partido rompido em pedaços, modificado, revisado, desalinhado, modernizado. A teoria é marxista, a análise é de oposição ao neoliberalismo. A prática, pequeno-burguesa. Têm consciência de que jamais chegarão ao poder, mas atuam como se alguma reviravolta os pudesse guindar à liderança do país. Aliam-se, em certas ocasiões, com argumentos sibilinos, a forças políticas contrárias a seus ideais. Em busca da abertura sem preconceito e de alianças pluralistas, apóiam candidatos de direita.

Em todo caso, as esquerdas estarão sempre na contramão da via política. Mesmo quando chegam à instância do poder, entrarão pela contravia das idéias e propostas que antes defendiam.
O esquerdista, ao chegar ao poder, age convencido da justeza inquestionável de suas análises e propostas na busca de sua própria promoção. Impõe, propõe e executa planos e programas, acreditando estar servindo ao povo.

28.06.2007

N.B. Suas sugestões e comentários poderão ser incluídos no texto, com citação de autoria, se aceitar.

Nenhum comentário: