(Olho d'água, Biocomunidade Sítio das Neves, produz 40 m3/dia. Foto: Eugênio Giovenardi)
LIVRETO DISPONÍVEL
CARTA
DA ÁGUA:
DA
ESCASSEZ À TRANSIÇÃO HÍDRICA
Newton
Castro, Engenheiro Civil
Eugênio Giovenardi, ecossociólogo e escritor
A
história da água sobre o planeta Terra é complexa e está diretamente
relacionada ao crescimento da população humana, ao grau de urbanização e aos
usos múltiplos que afetam a quantidade e a qualidade. (José Galizia Tundisi, Água no século XXI)
O Oitavo
Fórum Mundial da Água, que se realiza em Brasília, de 18 a 22 de março de 2018,
mobiliza mais de uma centena de países, o governo brasileiro, os governos
estaduais e municipais e um grande número de institutos acadêmicos e
organizações não governamentais. As decisões que serão tomadas nesse evento
terão efeito não só para o Brasil. Elas contemplarão os mais de 7,5 bilhões de
habitantes humanos, além de muitos outros bilhões de seres vivos que constituem
a biodiversidade do planeta.
As
mudanças de comportamento climático, pelas quais atravessa o planeta, afetam o
regime de chuvas e provocam situações extremas de longas estiagens ou inundações
desastrosas. Esses eventos, com maior ou menor intensidade, se fazem sentir em
todas as regiões do planeta.
Na
organização da natureza, a água está disponível, indistintamen6te, para todos
os seres vivos. Alguns deles, como as árvores, são protetores dos cursos de
água. Com exceção da espécie humana, todos os seres vivos convivem
harmoniosamente com a água. Não existe, no conjunto de riquezas naturais, uma
oferta específica de água para a espécie humana. Ao se tratar do uso da água
pela espécie humana, deve-se considerar que sua demanda é crescente e
diversificada.
A
intervenção humana no cenário natural, relacionada à reprodução e à
sobrevivência, ocasiona distúrbios que podem ser danosos a todos os seres vivos
que formam a biocomunidade de um bioma e seus ecossistemas.
Na
administração da captação e retenção das águas disponíveis para uso humano há
que se considerar duas questões fundamentais: quanta água há e quantos são os que
precisam de água, incluindo todos os seres vivos de um bioma. Um terceiro
elemento, não menos importante, se acrescenta aos dois anteriores: quanto custa
satisfazer equanimemente a gama diversificada de necessidades da população
humana.
1)
Situação
atual
O Oitavo
Fórum Mundial da Água, com a participação dos órgãos oficiais de todos os
países envolvidos, órgãos governamentais e não governamentais brasileiros, se
debruçará particularmente sobre as circunstâncias físicas do planeta e específicas
do Planalto Central. Por ser o berço das águas, O DF requer uma sábia e gradual
mudança de paradigma dos habitantes brasilienses a respeito da natureza.
A atual situação hídrica de escassez
resulta do aumento da população, de sua demanda diversificada, da urbanização intensa,
da malha rodoviária que favorece o uso individual do transporte e da devastação
dos mananciais. Agrava-se com a irregularidade e diminuição das chuvas como
efeito de mudanças climáticas. O conjunto desses fatores reduzem a capacidade
de suporte geográfico do DF e conduzem ao empobrecimento da biodiversidade
regional.
A inexistência ou o inadequado
acompanhamento do balanço hídrico, o ineficiente gerenciamento de bacias
hidrográficas, a consequente devastação de matas ciliares, a extinção de
nascentes e pequenos cursos d’água obrigaram os gestores a decidirem, com
atraso, pelo racionamento generalizado no fornecimento de água.
Outros aspectos importantes que provocaram
a escassez hídrica se referem ao descontrole do uso de águas subterrâneas por
meio de poços artesianos (mais de 40 mil no DF), a ações técnicas e políticas
pouco significativas de captação de águas pluviais e ao escasso reuso de águas
servidas.
Essas dificuldades são acrescidas pela
pouca integração com as comunidades vizinhas que formam a Área Metropolitana de
Brasília, pelas perdas significativas (mais de 30%) de água tratada e pela
especulação imobiliária desenfreada. Esses fatores provocam demandas fora de
controle.
Agregue-se que a paralização das obras de
Corumbá IV (GO) afetou igualmente o fornecimento de água à população do DF. A
construção da usina de tratamento fornece água retirada do Lago Paranoá com
vazão inicial de 700 litros por segundo ou 60,5 milhões de litros por dia. É de
se notar que a retirada de águas acumuladas pela chuva não significa aumento da
capacidade natural dos poucos mananciais que ainda restam no DF.
2)
Situação
desejável
O consumo responsável e racional da água,
fruto da educação ambiental e da aplicação rigorosa da legislação pertinente,
propiciará um volume diário democrático e igualitário à população. Órgãos de
saúde pública nacionais e internacionais deveriam sugerir a cota mínima
necessária para orientação dos organismos responsáveis pelo abastecimento de
água a toda a população.
A irregularidade e a escassez de chuvas,
segundo informações divulgadas, podem continuar por longo tempo. Esse alerta
deve ser intensamente comunicado à população para despertar atitude consciente
diante da escassez e gerar novos comportamentos. É prudente assumir que as
mudanças climáticas afetam fortemente o Planeta e, particularmente, o Cerrado
brasileiro, o que implica em mudança de costumes no uso da água, tanto na
cidade quanto nas lavouras produtoras de alimentos.
Propõe-se
para isso um processo salutar de transição hídrica.
A transição hídrica significa alteração de
atitudes, substituição de hábitos, mudança de conceitos em relação à água, para
a passagem do modo atual de comportar-se a outro mais adequado. Trata-se de
mudança de paradigma que implica em olhar de maneira diferente a natureza.
Ainda
que os reservatórios locais cheguem a 100% e novas retiradas sejam feitas de
longas distâncias, é necessário que a população mude seu comportamento em
relação ao uso da água.
É
imprescindível realizar o balanço hídrico do DF e Área Metropolitana tanto no
uso pessoal quanto na produção agrícola e industrial cujos resultados devem ser
apresentados, com transparência, à população.
Entre ações importantes e urgentes
propõe-se:
·
investir fortemente no gerenciamento das
bacias hidrográficas;
·
criar programa específico de proteção e repovoamento
das matas ciliares com espécies nativas;
·
estabelecer, com a participação dos
comitês de bacias, um monitoramento eletrônico da vazão das nascentes e
pequenos cursos d’água para informação permanente à população;
·
estimular e promover forte integração da
população do DF com municípios vizinhos para avaliar a variação do potencial
hídrico dos cursos d’água;
·
fomentar ações de reuso da água e utilização
da água da chuva;
·
reduzir as perdas de água tratada a níveis
não superiores a 10% e, ao mesmo tempo, intensificar sistemas de controle de
perdas de rede;
·
controlar, fiscalizar e impedir
rigorosamente e sem tréguas a ocupação irregular e a especulação imobiliária;
·
orientar a população sobre a outorga e a
finalidade do uso das águas subterrâneas e fiscalizar sistematicamente o volume
utilizado através de relógios medidores.
3)
Transição
Hídrica
Entre as ações para o êxito da transição
hídrica e a mudança de paradigma, sugere-se, especialmente para o DF:
·
Mapear e divulgar amplamente todos os
nascimentos de corpos d’água da região do Distrito Federal e adjacências.
·
Programar investimentos adequados a
montante (águas acima) com a finalidade de proteção dos mananciais, mantendo
uma linha intransponível para preservação da vegetação nativa.
·
Ampliar o sistema de captação de águas da
chuva nos prédios urbanos e rurais que favoreçam, por um lado, a recarga dos
aquíferos e, por outra parte, reduzam a pressão sobre os reservatórios.
·
Desenvolver tecnologias adequadas e
divulgar informações para reuso da água de acordo com a modalidade de seu uso.
·
Informar a população sobre o consumo de
água embutido na geração de energia elétrica. O consumo de dois quilowatts/dia por
habitante necessita de 13 mil litros de água (6.600 litros para gerar um
quilowatt). Não é de estranhar que as represas hidrelétricas se esvaziam.
·
Incentivar investimentos em alternativas
de geração de energia elétrica. Poupar energia hidrelétrica é poupar água;
·
Universalizar a educação ambiental sobre a
redução, seleção e classificação do lixo para proteger os cursos de água.
·
Avaliar o Zoneamento Econômico Ecológico
(ZEE) no que tange ao uso da água nas diversas atividades humanas, urbanas e
rurais.
·
Considerar os habitantes de municípios
vizinhos afetados pela mesma situação da capital federal, pois pertencem ao
mesmo ecossistema.
·
Buscar intensa Cooperação com os Estados
de Goiás e Minas Gerais no que tange aos recursos hídricos.
·
Criar Comitês de Risco para as diversas
atividades econômicas no sentido de buscar o ponto de equilíbrio entre o uso e
a reposição do volume hídrico.
·
Elaborar planejamento de curto, médio e
longo prazos para implementação de medidas econômicas de caráter permanente ao
acesso à disponibilidade da água.
·
Cumprir a legislação que decreta a água como bem natural, de uso comum do
povo, não sendo propriedade nem de órgãos públicos, nem de corporações ou
pessoas físicas. Aos órgãos públicos compete o gerenciamento da água e não sua propriedade;
·
Criar o Fundo de Gerenciamento e Controle
do Uso da Água, (Bolsa Água para agricultores) com a responsabilidade de propor
ações especiais e apoiar iniciativas educacionais, científicas ou outras
pertinentes ao uso e conservação dos corpos d’água. O Fundo será gerido pela
sociedade civil, com participação de especialistas, empresas públicas, privadas
e universidades.
·
Assumir institucionalmente o estado de Transição Hídrica estimulando
ações continuadas e perenes.
·
Estabelecer, com urgência, metas consistentes
para os próximos vinte anos.
·
Pôr em ação, com o apoio da mídia, um
sistema de comunicação permanente sobre a escassez hídrica.
·
Criar PORTAL DE TRANSPARÊNCIA com a
disponibilização de todos os dados, estatísticas, consumos, disponibilidade
hídrica e demais informações necessárias à participação e fiscalização da
população.
·
Incentivar a organização popular de grupos
de observação e informação sobre ações de proteção de nascentes e da vegetação
nativa realizadas no âmbito do DF.
A
caracterização do estado de Transição Hídrica permitirá a todos,
permanentemente, travar contato com a realidade da escassez de água e da
necessidade de cada um fazer sua parte de forma consciente.
Tratando-se
de uma situação muito grave, todos somos responsáveis: órgãos públicos e
privados, pessoas físicas e jurídicas, centros de ensino e pesquisa, além de
outros agentes que podem agir de forma positiva.
O
objetivo é a discussão de medidas e soluções para a atual e as próximas
gerações, que podem não encontrar água suficiente e adequada às suas
necessidades.
A
ênfase deve ser dada à mudança de
comportamento dos diversos agentes sociais, desde o cidadão comum até os
organismos de controle e execução.
A
Transição Hídrica há que ultrapassar períodos de governos, pois a natureza do
problema não comporta desvios em relação ao tema central. Requer reavaliações
permanentes, sem mudanças de curso ou paralização de ações.
A
transição necessariamente perpassa toda a sociedade. A comunicação adequada e
transparente estimulará a participação da população sem empecilhos burocráticos
às soluções propostas.
O
estabelecimento de algumas metas de curto prazo, imediatamente propostas,
poderá estancar problemas crônicos. As metas de médio e longo prazo deverão se
estender, pelo menos, aos próximos 2 anos, de tal forma que as futuras
gerações, por nossa desídia, não sofram consequências maiores.
Os
meios de comunicação e a organização popular em defesa dos mananciais têm papel
fundamental neste esforço de conscientização, divulgação e êxito da Transição
Hídrica.
Esta
Carta da Água resume os debates
realizados no Terceiro Seminário Águas Acima, realizado em 30.3.2017, em
preparação ao Oitavo Fórum Mundial da Água que se efetua em Brasília, no mês de
março de 2018.
Promovido
pelo Instituto Histórico e Geográfico/DF, contou com a inestimável participação
do Conselho de Arquitetos Urbanistas/DF, do Conselho Regional de Engenharia e
Agronomia/DF, da Embrapa, da Emater/DF e da Ordem dos Advogados do Brasil/DF.
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