quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

QUEREM

Querem que me alegre com milhões de carros entupindo estradas, engarrafando as ruas da cidade habitada por seres inteligentes.
Querem que me alegre com as geladeiras novas aposentando as velhas.
Querem que me alegre com os prenúncios alarmantes do crescimento do PIB.
Querem que me alegre, sorvendo números e percentuais otimistas de vendas nos shoppings lotados, de embarques em aeroportos superlotados e de entradas em hotéis congestionados.
Querem que me alegre porque cada cidadão pequeno ou grande tem no ouvido um aparelho celular ou um Ipod.
Querem que me alegre com os avanços da medicina que possibilita a uma junta médica retirar 42 agulhas cravadas por um bárbaro no corpo de uma criança.
Querem que me alegre com a justa distribuição capitalista da renda que reduz as desigualdades pelo princípio do mais que nada.
Querem que me alegre com a justiça ao ver impunes os que extorquem milhões, os que fazem, mas roubam e ao ver punidos ou mortos os que não contam com advogados que inocentam criminosos daqui e de fora.
Querem que alegre com os 160 milhões de brasileiros que não leem um só livro no ano.
Querem que me alegre com a população infantil e adolescente que termina a escola primária sem compreender o que leem e sem poder expressar numa carta um pensamento coerente.
Querem que me alegre com as filas de doentes que aguardam, diariamente, consultas e exames em nossa evoluída indústria hospitalar.
De que me alegro?
Ouso alegrar-me, com reticências, ao perceber que, mesmo tardiamente, os ecologistas e ambientalistas despertaram a letargia displicente de nossos governantes.
Ouso alegrar-me, com desconfiança, ao ouvir promessas de uma lei ambiental, mesmo que dúbia, apontando para a preservação de nossas florestas.
Alegro-me pelas árvores que não tombaram diante da sanha das empreiteiras, da indústria imobiliária e viária, do fogo e dos tratores dos bovinocultores e sojicultores.
Alegro-me pelos mananciais preservados e pelas nascentes que fazem correr os riachos.
Alegro-me por poder sair à noite, no silêncio cândido do Cerrado, sentar na casca espessa do planeta Terra, contemplar estrelas e falar com Aldebarã.

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