quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

CONHECIMENTO, TECNOLOGIA, SABEDORIA

É importante reconhecer que os conhecimentos gerais, as invenções e o uso de equipamentos tecnológicos se universalizaram rapidamente, nos últimos cem anos e se socializaram. O mesmo telefone celular é usado na Índia, no Kênia, no Brasil e no Peru, com a mesma tecnologia, pelo alto executivo e pela empregada doméstica.
A tecnologia facilita a comunicação, difunde a informação, não exige conhecimentos na mesma profundidade e não melhora necessariamente o agir, o comportamento, a convivência. Aprende-se com facilidade os passos que permitem o uso mecânico do equipamento porque os artefatos são organizados e movidos por uma “inteligência” automática, por um sistema de associações que se desencadeiam sem que o usuário tenha conhecimento da física e da eletrônica. Aprende-se a usar minimamente o cérebro para manejar o aparelho. Marca-se o número, ouve-se a voz e fala-se. Nada mais fácil para se usar alta tecnologia.
O simples funcionamento do artefato tranquiliza, alegra, satisfaz por se ter conseguido a informação desejada. O usuário apega-se ao aparelho, sente-se um prolongamento da pequena máquina como se fosse parte dela. Ou admite que a máquina é um novo órgão do corpo humano, uma extensão de seu espírito. Ela lhe presta serviços e o usuário já não pode passar sem ela, nem lembra como era sem ela. O aparelho torna-se imprescindível. Poderá esquecer o filho no carro enquanto vai ao centro comercial ou ao banco, mas não o celular. O toque escolhido e conhecido provindo do aparelho o faz saltar para atendê-lo. O choro da criança não o perturba ou mesmo já não se faz ouvir. O grito do celular tem que ser atendido. Faz parte da convenção tecnológica, não importa a informação que contenha ou que se revele, muitas vezes, um simples engano. O choro da criança é uma comunicação em várias dimensões: fome, sede, dor, afeto, manha...mas pode esperar.
A automação parcial dos aparelhos conduz à alienação do cérebro que espera, com certo grau de certeza e sem sua participação, que o artefato deve funcionar porque foi projetado para isso. Dá ao artefato poder, autoridade e lhe presta obediência. Delega o conhecimento ao aparelho. É nessa delegação que atua o marketing, a propaganda, a política econômica que põem o poder aquisitivo, a parafernália de artefatos tecnológicos ao alcance universal para uso e apropriação.
Não é o conhecimento, a aprendizagem, a ciência que, de maneira geral, toca as pessoas. É a capacidade facilitada de ter e usar aparelhos que constroi, hoje, um novo patamar de felicidade, de ascensão social, de igualar-se aos que têm e, consequentemente, de exercitar algum poder.
Passa-se do chá à aspirina, do toque físico do médico à tomografia, à cirurgia, à UTI, num processo cada vez mais mecânico, científico, tecnológico e impessoal. As máquinas são conhecimentos aplicados e intermediários, quando não substitutos do ato humano. Os sentimentos voltam a expressar o complexo psíquico das pessoas nas horas finais do velório e do enterro. As pessoas se reencontram na morte. É o reencontro das almas. A sabedoria chegou, mas um pouco tarde. Silêncio mortal. Palavra inútil.
A multiplicidade de guerras atuais tomou conta das atenções humanas. Elas exigem aparelhos, equipamentos, tecnologias, estratégias, precisão matemática e pouca sabedoria.
Sabedoria é a capacidade psíquica de escolher, de determinar o que fazer, como atuar no universo dos seres que nos cercam. É a liberdade de ser e agir. Conhecer os seres, sua essência, como agem, como se manifestam, como se comunicam, como sobrevivem são ingredientes da sabedoria.
O primeiro estágio, segundo Sócrates, é o conhecimento de si próprio. Conhece-te a ti mesmo. A relação com os seres não humanos da natureza e com as pessoas baseia-se no respeito à sua existência, à forma de vida e à finalidade da vida de cada ser. É sobre esse eixo que gira a convivência e a comunicação de uns com outros.
Os seres inteligentes que usam o pensamento e a palavra para se comunicar o fazem baseados na premissa estrutural de que há em todos o mesmo motor, com maior ou menor rotação, mas que gera a mesma luz. Nesta lógica, o outro sou eu. Temos o mesmo motor vital, de onde se origina o respeito. Quando falamos e nos comunicamos, revelamos a complexidade desse motor. É possível, portanto, que o objeto do pensamento seja o mesmo, mas não a escolha do caminho. Existimos em três dimensões: a liberdade de ser, a liberdade de fazer e a de agir.
O ser é livre em si mesmo, em sua solidão metafísica dentro das quatro paredes da alma. A liberdade de fazer implica tempo e espaço, além de conhecimentos e técnicas. A liberdade de agir exige sabedoria, implica convivência, palavra, sentimentos, cuidados para entrar no reino do outro. E, aqui, o outro sou eu. Compreender esta verdade simples toma ainda alguns milênios.
O preconceito, a dominação, a escravidão, a tortura pertencem à liberdade de fazer e conflitam com a liberdade de ser e de agir. O diálogo é feito de palavras. As palavras são produto da escavação do pensar, do descobrir, do associar, do distinguir, do decidir. É na liberdade do agir que reside a sabedoria.
As desigualdades sociais e de oportunidades, a pobreza econômica são resultados do uso da liberdade indiscriminada de fazer, ainda que legalizada e protegida por leis. O mais forte se apodera do tempo e do espaço, projeta e difunde conhecimentos e técnicas para que outros as utilizem mecanicamente e dependerão sempre dos inventores e inovadores. Chega-se, assim, a uma sociedade do fazer – homo faber − (Hannah Arendt), na qual os seres inteligentes se comunicam por instrumentos que tem vida e mecanismos próprios e mantêm as pessoas dominadas e domesticadas. A palavra é apenas um acessório que indica o como fazer. Somos dominados pelo sistema. E quando recorremos ao tribunal para reclamar de um serviço mal executado ouvimos um robô com voz meiga de secretária a nos informar: é o sistema. Foi uma falha do sistema. O sistema caiu, Estamos sem sistema, tente mais tarde, queira nos desculpar.
Um sentimento de orfandade toma conta do corpo e da alma. Já não precisamos pedir desculpas aos outros quando atentamos contra a sabedoria da convivência. O sistema que comanda nossas vidas nos pede desculpas.
Tentaremos mais tarde. Será melhor que nunca.
Blog, 28.01.10

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