domingo, 25 de maio de 2008

SIM, PODEMOS

Sim, podemos ter um milhão de carros, entupir as ruas e os estacionamentos. Podemos escavar imensos buracos e esconder, durante muitas horas, nesses subterrâneos, essas preciosas conquistas do progresso, troféu da realização pessoal.
Podemos cortar o fluxo das águas que brotam das nascentes, abater as árvores que lhe davam sombra, afugentar os pássaros que nelas nidificavam e os animais que se abrigavam durante as noites,
Podemos arrasar o chão, levantar centenas de casas, abrir poços artesianos, estender a rede elétrica, reclamar dos serviços essenciais precários, queixar-se do transporte público, ineficiente e caro.
Podemos traçar ruas, avenidas, erguer viadutos, espalhar centenas de placas de alerta inúteis e inócuas, instalar barreiras eletrônicas e câmeras que multem os infratores. E podemos, diariamente, lamentar os mortos que a displicência e a afoiteza deixam caídos ao longo das pistas.
Podemos e vamos conseguir a devastação do Cerrado, da Amazônia como já o fizemos com a Mata Atlântica.
Podemos inundar florestas, eliminar Sete Quedas e Paulo Afonso para iluminar ruas, casas e torres de apartamentos. Podemos secar lagoas e cachoeiras.
Podemos pagar caro pelo petróleo e o etanol, pelo pão nosso de cada dia, pelo feijão e o arroz. Podemos dar trabalho a uma parte dos desempregados, aumentar a renda dos trabalhadores, garantir migalhas aos famintos. Ao mesmo tempo, podemos assegurar o lucro imoral dos bancos, os privilégios de um décimo da população, a impunidade dos corruptos ladinos, cínicos e mentirosos instalados no poder.
Podemos suportar todas as malandragens do cotidiano, embalados pelo futebol, o carnaval, o Natal dos pobres, as corridas da Fórmula 1, a compra do carro zero km, em 80 suaves prestações, a geladeira e o celular.
Podemos, ironicamente, pagar caro pela água abundante de nossos rios represados, cada vez mais sujos e sem a suavidade bucólica de outros tempos.
Podemos, sob os auspícios do progresso, da modernidade, da tecnologia, aumentar nossa raiva, nossos desenganos e frustrações, construir um labirinto para nossa angústia diária, consolidar o caos de nossa liberdade de ir e vir, de falar e não ser ouvido.
Diante da catástrofe de nossa ignorância, a Natureza nos adverte e castiga, mas a época não nos permite ouvi-la. Podemos, por isso, salvar algumas vidas dos escombros gerais e passar os dias enterrando mortos. Preferimos a solidariedade na desgraça alheia à sabedoria previdente de seres dotados de raciocínio.
Nós podemos e tudo indica que nossa capacidade de piorar as situações de convivência vai consegui-lo.
Podemos e conseguiremos piorar o admirável mundo novo.


sábado, 24 de maio de 2008

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