domingo, 20 de setembro de 2009

FELICIDADE PRIMITIVA

O noticiário da última sexta-feira (18.09.09) foi regado com estatísticas e alimentado com números e porcentagens. Mais crianças na escola – aprendendo menos, segundo outros dados oficiais. Mais computadores, mais celulares, geladeiras, sofás novos na sala, TV’s espalhadas pela casa. Mais empregos com carteira assinada – sem mencionar as demissões constantes em setores importantes agravadas pela dificuldade de utilizar conhecimentos estocados em profissionais acima de 50 anos.
A felicidade primitiva de sair da caverna, escapar de dentes ferozes, esconder-se em choupanas de pedra e sobreviver à inclemência do clima, está sendo recuperada. É uma caminhada humana que iniciou há 10 milhões de anos. Como imaginar, no estágio tecnológico atual, que essa felicidade primitiva não tivesse continuidade?
Todos os números anunciados garantem que essa felicidade primitiva de conquistar, adquirir, sobreviver e orgulhar-se da própria sobrevivência são alentadores e enchem de glória os homens que detêm o poder e se atribuem o mérito das vitórias.
O país foi reduzido politicamente à felicidade primitiva. A estatística faz médias e equilibra os números. Mostra que a felicidade primitiva tem graus, diferenças e desigualdades. Uns são mais felizes que outros nesse patamar primitivo. Minha diarista limpa cinco apartamentos na semana, além de lavar, passar e cozinhar. Conseguiu, com seu trabalho, meu dinheiro e o dos outros quatro, levantar casa em terreno de invasão, que ela denomina barraco. Nele há sofá, TV, som, geladeira, máquina de lavar, freezer. Leva celular na bolsa. Passa quatro horas no trânsito. Levanta às cinco da manhã. Trabalha oito horas diárias. Sua felicidade primitiva está garantida. Orgulha-se de sua força de vontade, habilidade e vitórias sociais. Angustia-se com seus quinze quilos acima do peso ideal. Tem quarenta anos. É praticamente analfabeta. Mal escreve seu nome. Erra na palavra escrita e falada. Não lerá um livro até o fim de seus dias, nem jornal, nem revista, nem irá a teatro ou concerto no Teatro Nacional. Capta notícias pela metade. Acredita nos apresentadores de TV. Tem fé em Deus. Espera três meses para uma consulta de emergência num hospital público. Usa seus conhecimentos práticos, assessorada por detergentes da última propaganda, desinfetantes, bombril e muita água. Sua melhor virtude política é a capacidade de se indignar contra as decisões do governo, mas acaba votando nas promessas que não serão cumpridas. Estimo que haja 150 milhões de brasileiros na mesma situação de minha diarista. O governo do país prefere um povo com tecnologia avançada e mentalidade atrasada.
As autoridades do país mostraram-se contentes, gratificadas e vencedoras com os números, os percentuais e as médias elaboradas pelo sistema estatístico. Uma delas é 1,8 filhos por casal.
Os números atestam, o país vai bem. A empregada doméstica, num curso de alfabetização, entrevistada por um canal de TV tem razão e se alinha com o Presidente da República.
− Por que, perguntou, estudar matemática para limpar a casa de madame e cozinhar o feijão?
A felicidade primitiva do brasileiro está garantida e comprovada por percentuais estatísticos.

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