terça-feira, 29 de abril de 2014

DUAS PERNAS OU QUATRO RODAS



(Foto: Brasília, 2014)

O fascínio humano pela velocidade faz supor que a espécie homo sapiens guarda nos genes a nostalgia de, um dia perdido na história milenar da evolução, ter voado. As asas de Ícaro se desprenderam ao se aproximar do Sol. “Subi além do Olimpo, além dos cimos, que Pégaso alcançou com seu voo”, diz Milton (O Paraíso Perdido, VII Livro). Belerofonte tentou voar até o céu em seu corcel alado. O cavalo, picado por um moscardo enviado por Júpiter, atirou ao chão o cavaleiro. O homem sonhava em aumentar a velocidade do cavalo.
A luta contra o tempo desafiante faz o homem correr e voar. Produzir mais em menos tempo. A loucura da produtividade.

Com insistência, noticiários, administradores públicos e especialistas mostram que nossas cidades estão chegando ao caos do trânsito. O automóvel, inventado para ganhar tempo, está corcoveando pelas vias e derrubando seus cavaleiros. Um milhão e quinhentos mil carros multiplicados por seis metros quadrados de ferro, vidro e plástico reviraram nossa cidade.
Eles impuseram ao homem a obrigação de alargar ruas, abrir avenidas, vias expressas, viadutos e estacionamentos. Milhares de sinais de trânsito, das placas aos semáforos, do policiamento aos controles eletrônicos, insaciáveis, querem sempre mais. Brasília se encheu de gente e se entupiu de carros. A capital da República está diante de salomônica alternativa: diminuir a população ou reduzir o número de carros. Quem se atreve a escolher?
As duas pernas do pedestre vão tomando a característica de enfeite orgânico substituídas pelas quatro rodas do pégaso moderno. A cidade de Brasília está desenhada para o automóvel. Todos os pontos da cidade ficam perto do automóvel e longe do pedestre. Este, a meu juízo, é o ponto essencial que dificulta a mobilidade do cidadão brasiliense.
Como chegar saudavelmente ao ponto distante do pedestre tomando um automotor adequado para fazê-lo no menor tempo possível? Diante do fracasso das iniciativas para lograr esse alvo, anuncia-se que, daqui a seis anos, o protótipo da velocidade urbana congestionará e paralisará o trânsito em Brasília.
Fala-se, há uma década, de caos urbano como se fosse um personagem vivo. Há expressões que se repetem com frequência, mas seus efeitos não acontecem com a mesma velocidade que os carros enchem as ruas. Eis algumas:
“Falta planejamento urbano e uma política de trânsito e transportes para a capital.”
“Falta gestão de trânsito por parte do Departamento de Trânsito (Detran).”
“A presença de mais fiscais de trânsito poderia aliviar a sensação de caos no centro da cidade.”
“O governo terá de adotar medidas de restrição ao uso do automóvel.”
“Nós precisamos melhorar a gestão do sistema (!). Criar políticas de incentivo ao uso compartilhado do veículo particular e coletivo.”
“O problema principal é a própria configuração da cidade, com núcleos urbanos afastados do centro de atividades básicas.”

Diante desses pronunciamentos inócuos, a resposta da população é queimar ônibus, obstruir vias, impedir a circulação e parar o funcionamento da cidade.
O deslocamento de 2,6 milhões de cidadãos brasilienses esparramados sobre 5.822 km2 se faz, preferencialmente, pela superfície urbana. Este é o primeiro complicador, o primeiro nó a ser desfeito. A superfície de Brasília tem limites. O subsolo, tão bem usado em Paris, Londres, Nova Iorque, São Petersburgo, Quebec e dezenas de outras grandes cidades, ainda não foi convenientemente trabalhado em Brasília.
A preferência dos administradores públicos se dirige a usar mais intensamente a superfície urbana com modos coletivos de transporte, linhas de ônibus convencionais, uma linha de metrô rudimentar e o debutante BRT (Bus Rapid Transit). As vias expressas do BRT causam um impacto ambiental doloroso e requerem construções gigantescas cujo custo/benefício econômico e ecológico ainda está para ser justificado. Importante questão ecológica deveria ser respondida por especialistas de diferentes disciplinas sobre o número e uso do carro particuar: qual é o limite de emissão de gases de efeito estufa tolerável capaz de manter o ambiente saudável para todas as formas interdependentes de vida no espaço urbano?
Além dessa resposta, qual é o espaço físico adequado em metros quadrados para determinar inteligentemente a densidade populacional de uma área habitável com as características do bioma cerrado? No Distrito Federal, o espaço físico por habitante decresceu de 41.000 m2, em 1960, para 2.220 m2, em 2013.
O superpovoamento da cidade provocou perda de grande parte da vegetação nativa, soterramento e extinção de mananciais, desaparecimento de cursos d’água, redução de áreas de recarga de aquíferos, impermeabilização de vastas extensões sem estudos ecológicos.
Uma característica de Brasília é que os principais pontos de destino e de interesse da população, pelo projeto urbanístico da cidade – local de trabalho e serviços públicos – foram localizados longe do cidadão sem prever os meios e os modos integrados de transporte para alcançá-los.

A capital como centro de decisões políticas do país centralizou também os pontos de maior interesse da população que se acomodou, ao longo dos anos, em áreas distantes.

Sem uma revisão drástica do funcionamento da máquina urbana de Brasília, as profecias apontam para uma queda espetacular do cavaleiro que não conseguirá refrear os corcovos de seu pégaso voador sobre quatro rodas.
Há evidências de que os requerimentos dessa revisão estão muito acima da capacidade dos administradores públicos que se revezam nos cargos sem a devida preparação política e conhecimento técnico da gestão urbana.

(Leia  o ÚLTIMO PEDESTRE, Kiron editora, 2013)



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