quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

O ADVÉRBIO COMO



As propostas, as discussões e a prática sobre a preservação da ideia essencial do Projeto do Dr. Lúcio Costa para a construção da nova capital dividem as opiniões de especialistas confrontadas com as dos administradores da cidade de Brasília que se esparrama por 5.822 km2.
O Dr. Lúcio Costa, ao traçar as linhas do Plano Piloto, provavelmente descurou de como esse projeto sustentaria a ideia genial nele contida. Até onde vai a responsabilidade do eminente arquiteto?
O conceito de país continental deve ter influenciado os traços do desenho monumental das obras de Oscar Niemayer. Acostumados ao pequeno e ao pobre, a imensidão dos espaços bucólicos que dão o caráter de grandiosidade do Plano Piloto soa, aos ouvidos da burocracia apática, dominada por interesses privados, como um desperdício a ser evitado.
Espaço livre, liberto da ação individualista do cidadão não é o mesmo que espaço desocupado ou degradado. Estranhamente, os administradores da cidade ignoram o sentido de bucólico e são atraídos por espaços desocupados. Ignoram o sentido de espaço livre e liberto no conjunto urbanístico. Trata-se de zonas liberadas que representam a ação grandiosa da natureza para dar solidez à relação do cidadão com todos os demais seres vivos vegetais e animais que integram o mesmo espaço.
As distintas instâncias do concurso que aprovaram a grandiosidade simples do projeto do Dr. Lúcio Costa talvez tenham dado pouca atenção ao advérbio modal para a preservação futura da ideia expressa no desenho arquitetônico. Como se sustentaria a magnificência do projeto da nova capital e por quem?
Para onde e para quem se dirige o como? Por que, de tempos em tempos, surgem propostas para adaptar a preservação do conjunto urbanístico de Brasília reconhecido como Patrimônio Mundial pela Organização das Nações Unidas para a Educação e a Cultura? Por que esse reconhecimento mundial não é suficiente para garantir a preservação das características principais da capital?
O PPCUB está propondo um como amplo, geral e irrestrito. Está sendo proposto por oficiais de gabinete, unindo burocracia, política e interesses econômicos privados. É uma iniciativa capciosa e ardilosa acenando para a “melhoria da qualidade de vida dos brasilienses”. Essa afirmação do porta-voz da Seduma faz supor que “ocupar a orla do Lago e democratizar o espaço” melhora a qualidade de vida dos moradores de Samambaia, da Estrutural e do Sol Nascente.
Brasília, e especialmente o Plano Piloto, está virtualmente entregue a competentes arquitetos. Conheço mais de uma dezena de profissionais experientes que manifestaram suas opiniões e críticas em artigos, blogs e várias coleções de estudos e análises contidos em livros. São raros os artigos escritos por arquitetos e geógrafos em que uma das afirmações contundentes não seja a ausência de planejamento urbano em Brasília. Mas como? Quem é responsável pelo planejamento urbano? E, quando se fala em urbanismo, qualquer voz que não seja de arquiteto tem pouca chance de ser levada em consideração.
Quem mais poderia ser ouvido de forma ampla, geral e irrestrita além dos professores de faculdades de arquitetura, arquitetos do Iphan, do IAB, do IHG/DF, do Grupo de Urbanistas por Brasília no sentido de fazer valer a promessa de melhoria da qualidade de vida dos brasilienses sem descaracterizar as ideias básicas do projeto do Dr. Lúcio Costa?
Perguntei, hoje, à minha diarista, que enfrenta seis horas de ônibus, dos confins de Valparaíso ao Plano Piloto, para chegar ao trabalho e voltar a casa, se estava a par ou se ouvira mencionar PPCUB, PURP, AE, AP, UP, PDOT, LUOS. Não sei! – disse. E ninguém mais do que ela, suponho, está interessada na “melhoria da qualidade de vida”.
Um dos quesitos essenciais, se não o essencial, é a água que garante o verde que acumula água. Nas 118 páginas e nas 795 folhas, contendo 72 planilhas, nas quais se propõem intervenções cruciais, salvo distração de minha parte, ignora-se o quesito água.
Na prática, em todos os projetos urbanísticos mais recentes, desde Samambaia, Sudoeste, Noroeste e da orla do Lago, o item água foi ignorado na origem e acenado como característica distintiva e ecológica por meio de captação de parte de águas da chuva para uso público. Lembro que os recentes projetos de uso do solo em áreas degradadas, dentro de Paris – La Villette e Georges Bressans (Vaugirard) – tiveram como ponto de partida, e merecendo menção especial, a preservação e o tratamento de nascentes de água nessas áreas.
Os córregos que cortam ou cortavam o DF e as centenas de nascentes extintas são uma claríssima indicação de que os projetos urbanísticos ignoram o elemento água essencial para a sobrevivência humana. Ao impermeabilizar uma área significa impedir a infiltração de água no solo e a recarga dos aquíferos, implica em diminuir a umidade, reduzir a biodiversidade e degradar a saúde. Na precipitação anual média de 1.250mm, no DF, cada módulo impermeabilizado de 100m2 impede a infiltração de 125 mil litros de água (125m3). Calcule-se, então, a área impermeabilizada dos 112 milhões de metros quadrados que correspondem à área tombada pela Unesco e se compreenderá a extensão do desastre ecológico. As inundações, em qualquer canto de Brasília, são indicativas do descaso se não da ignorância do volume de águas da chuva e de sistemas de captação em grande escala para uso coletivo.
Resta, então, o advérbio modal: como preservar o conjunto urbanístico de Brasília? Só uma frente popular –  cidadãos de Brasília – reunida na Esplanada, no Eixo Monumental, na orla do Lago, na DF-140, no Sol Nascente, ampliando o corajoso Grupo Urbanistas por Brasília, Movimentos Nossa Brasília, Movimento em Defesa de Brasília, SOS Parque Olhos D'água poderá deter a ignorância administrativa e controlar o ímpeto, a ambição e a auri sacra fames da indústria imobiliária e dos apologistas do confuso sistema viário que conduz ao precipício social.



Nota: Sou ecossociólogo, naturalista e escritor. Administro uma área liberada da opressão industrial e da tirania do consumo obsessivo, uma reserva natural de cerrado de 70 hectares (Sítio das Neves) para refúgio de variada fauna de ar e terra, reprodução espontânea da flora nativa (3.500 espécies), proteção de nascentes e recarga de aquíferos com captação de águas pluviais. Estudo a ocupação do espaço e a organização de algumas espécies da biocomunidade (mangabeiras, caliandras e catolé).

Um comentário:

Taveira disse...

Caro amigo Giovenardi,

Ao denunciar as armadilhas desse malfadado PPcub, você nos dá uma aula de Humanidades. Aliás, do seu texto emanam grandes lições de verdadeiro amor a Brasília, com vários ensinamentos de como preservar o monumento que Dr. Lúcio Costa um dia erigiu no Planalto Goiano. Monumento que os escravos da especulação imobiliária, devidamente apaniguados por falsos políticos, tentam CORROMPER e DESTRUIR, em nome da ganância e do desamor.
Parabéns, amigo, pela sempre lúcida visão de Brasília. Embora não apareçam muito, existem alguns bons companheiros nessa sua jornada. Por isso, lhe digo: você não está sozinho. Abraço fraterno. Taveira