quinta-feira, 23 de maio de 2013

A DESFIGURAÇÃO DO CERRADO PELA OCUPAÇÃO RURAL E URBANA







Ao ocupar um espaço da natureza, seja para produzir alimentos, seja para construir uma cidade, é necessário saber e lembrar que ali existem, há milhões de anos, habitantes com direito à vida. Não só pela vida de cada um dos indivíduos das múltiplas espécies como e principalmente pela interdependência de todos os seres vivos que nela habitam. O desequilíbrio dessa interdependência pode ser irreparável ou sua parcial recomposição poderá demorar dezenas ou centenas de anos.
A entrada da espécie humana em uma área já habitada significa, antes de qualquer coisa, participar da interdependência global para sobrevivência e reprodução do conjunto dos seres vivos de um bioma. O ser humano é excepcional, pois é o único, entre todos os seres, que pode e deve se perguntar em que e como sua presença participará dessa interdependência, dessa biocomunidade. Que mudanças a mão humana provocará no ambiente no qual compartilhará com todos os demais habitantes originais dessa área? Essa pergunta é raramente feita.
A experiência tem demonstrado que, nas formas de ocupação dos espaços rurais e urbanos, o ser humano, especialmente na época atual, age mais por instinto de exploração para sua sobrevivência e reprodução egocêntrica e menos por inteligência e conhecimento do conjunto natural no qual vai se instalar.
Houve, ao longo dos séculos, uma inversão das necessidades e interesses da caminhada humana. E essa inversão se fez saindo da floresta para os agrupamentos humanos e cidades. O ser humano, como qualquer ser vivo, se originou das águas e das florestas impulsionado e submetido às leis biológicas, genéticas e orgânicas da natureza. E, por milênios, a elas esteve ligado. A organização biológica de todos os seres vivos é essencialmente a mesma. “Cada vida tem vontade-de-vida não no isolamento, mas em meio a outras vontades-de-vida”. (Albert Schweitzer) Todos os seres vivos têm suas raízes no mesmo chão e se alimentam dos mesmos elementos básicos.
Os agrupamentos dos seres vivos obedecem à mesma estrutura vital de reprodução e constroem seu grupo genético consolidado numa organização social: abelhas, formigas, cupins, aves, macacos, seres humanos. A maior ou menor mobilidade dos diversos grupos de seres vivos, vegetais ou animais, entre estes o animal consciente, depende da oferta de alimento propiciada pela natureza. A fixação das diferentes espécies nas distintas regiões do planeta segue, há milênios, esse critério de oferta de alimento cuja base está na lei natural da rigorosa interdependência para a sobrevivência e reprodução da vida e satisfação existencial. A cada ser vivo sua felicidade.

Capacidade de adaptação

Diferentemente dos leões da África, dos ursos polares, dos flamingos de Galápagos, dos pinguins antárticos, das araucárias do Sul, o ser humano é uma das espécies capaz de se adaptar em qualquer região do planeta onde pode obter alimentos retirados de outros seres vivos que a natureza produz. Essa disposição orgânica de digerir a incalculável diversidade de alimentos existentes nas diferentes regiões do mundo distorceu a lógica de sua interpretação. O ser humano concluiu que tudo o que existe lhe foi exclusivamente destinado. Assim pensava Aristóteles e a Bíblia, na fábula da criação do universo, consagrou o mesmo princípio com a ordem expedida aos primeiros habitantes do planeta: “crescei e multiplicai-vos, dominai a terra e tudo o que nela há”. Seu instinto de dominação se desenvolveu e o ser humano se deu o direito de escravizar todas as espécies vivas, inclusive indivíduos de sua própria espécie sob o argumento da sobrevivência e reprodução egocêntrica.
No fato da interdependência dos seres vivos há que ser como a natureza e o conjunto do universo: manter o equilíbrio racional ameaçado sempre pelo dogmatismo de verdades ou de virtudes. A lei da gravidade não prescinde da lei da inércia. O respeito a todas as formas de vida significa que uma serve à outra. A dignidade diante da vida como valor primordial está em respeitar os limites da mútua incorporação de vidas.
A espécie humana, porém, degenerou para o egocentrismo, estabelecendo-se como centro do universo para a qual todos os demais seres devem convergir sob o comando de seus artifícios tecnológicos. O mundo pacífico, ecocêntrico, está perigosamente dominado pela fúria bélica antropocêntrica.

Crescimento da população humana

A abundância de alimentos à margem de grandes rios, de extensas planícies e densas florestas da África e da Ásia garantiu uma crescente reprodução de todos os seres vivos e deu à espécie humana a capacidade de compartilhar deles circunscrita, porém, nos limites do equilíbrio natural. O crescimento das populações humanas em distintas regiões do planeta provocou, ao longo de milênios, redução significativa de espécies vivas e da abundância de alimentos localmente disponíveis. Diferentemente de outras formas de vida, a espécie humana desenvolveu artifícios e truques, graças ao desabrochar evolutivo de suas funções cerebrais, que lhe possibilitaram de se adaptar às surpreendentes e drásticas mudanças climáticas.
Os sobreviventes das sucessivas demonstrações de força dos fenômenos naturais se recompõem e se reorganizam para sobreviver e se reproduzir. Domesticam sementes, guardam grãos para o inverno, melhoram os equipamentos de caça, aventuram-se nas águas dos mares, amansam aves, cabras, porcos e cavalos. Agrupam-se, transformam em abrigos as cavernas das rochas ou edificam sobre elas povoamentos sólidos e protegidos. A população cresce e se expande. Ocupa novos lugares. Há que desbastar, queimar árvores para ocupar terras, cortá-las para edificar casas e barcos ou, em seus vazios, semear grãos, drenar pântanos para não se afogar nas épocas de grandes chuvas.
Passados milênios, a espécie humana, espalhada sobre todos os continentes, incansavelmente, com mais determinação e eficiência, com meios eficazes e equipamentos destruidores, aciona os mecanismos para sua sobrevivência e reprodução. Da África para a Ásia, para a Europa, para as Américas, a espécie humana passou dos milhões aos bilhões. A face do planeta mudou e sua configuração continua se modificando em ritmo acelerado. Os vilarejos, os povoados pré-históricos, com arte, música, literatura épica, dramática e trágica transformaram-se em cidades, metrópoles e megalópoles.

Brasília

A ocupação dos espaços, ao longo do tempo, está fortemente relacionada ao crescimento da população humana e sua capacidade de adaptação aos diferentes climas e conformações geográficas e geológicas. As formas de ocupação, os critérios e as finalidades podem variar em intensidade e extensão. Os efeitos primários e imediatos, embora semelhantes em qualquer tipo de ocupação, segundo as regiões, também dependem da intensidade e da extensão, mas todos refletem sinais de destruição, de desfiguração, de mudança da fisionomia e da geografia. Mudanças essas agravadas com a expulsão ou eliminação de formas de vida anteriormente existentes nesses locais ocupados.
A área delimitada para a construção de Brasília, em 1957, de 5.822 km2 (582.220ha), abrigava 12.700 habitantes, correspondendo, em média, 45 hectares a cada morador. A vegetação do Cerrado, as nascentes e os cursos de água, as aves e os animais ocupavam essa imensidão do Planalto Central há milênios, obedecendo aos ciclos de reprodução e assegurando a interdependência natural.
A construção da cidade de Brasília, isto é, a substituição de árvores por edifícios, dos cursos d’água por vias asfaltadas, dos milhares de seres vivos que compunham a biodiversidade da região por quatro milhões da espécie humana transformou o espaço geográfico em 50 anos. O espaço físico por habitante foi reduzido de 45 hectares para um quinto de hectare (220m2).
A grandeza e a beleza da obra urbana, a estética arquitetônica, a generosidade de seus monumentos, a amplidão do céu que a recobre expressam o estilo moderno de adaptação da espécie humana ao novo ambiente escolhido e contribui para o desfrute em alto grau da felicidade de viver. Mas esta imposição do estilo de vida e de transformação do ambiente não foi sem contrapartidas.
O que perderam a espécie humana e todos os demais seres vivos que habitavam esse espaço há pouco mais de 50 anos? Os 3.000 exemplares de aves e insetos classificados, em 1957, pelos exploradores da área que se denominaria Distrito Federal, a que número foram reduzidos?

Biodiversidade

A biodiversidade foi diminuída, espécies definitivamente eliminadas ou confinadas em áreas inseguras de refúgio. Por isso, nem todas sobreviveram. A região ficou mais pobre em vidas pela redução das espécies que praticavam aqui a interdependência e o intercâmbio necessários à multiplicação da vida. Milhares de árvores que vicejavam sobre milhões de m2 de superfície cessaram de produzir oxigênio necessário à respiração. Foram substituídas por mais de um milhão de motores que emitem gases poluentes que se aninham nos pulmões de quatro milhões de pessoas. Nem sempre há que se orgulhar dos feitos da inteligência humana.
Estudiosos de diversos ramos da ciência, biólogos, geógrafos, antropólogos, sociólogos têm se debruçado sobre os efeitos da construção de Brasília e do povoamento do Distrito Federal com relação às mudanças de clima resultantes das transformações impostas ao bioma Cerrado.

Ocupação devastadora

Aceitando cifras conservadoras da ocupação do espaço do DF, estima-se que, em cinquenta anos, metade da área verde foi destruída com assentamentos e tudo o que eles requerem para atender às necessidades espontâneas e estimuladas da população. O diálogo vital e, por vezes, dramático entre os seres vivos e a natureza reflete os efeitos das contínuas mudanças e variações climáticas sobre sua capacidade de adaptação e sobrevivência.
O esgotamento do solo, isto é, a eliminação dos elementos de fertilidade pela maneira de ocupação ou de práticas de produção de alimentos induz à incorporação de agentes químicos que esterilizam o ambiente. Novas formas de vida, novas espécies alienígenas se reproduzem nesse ambiente modificado. A mão do homem impõe métodos de combate a essas novas formas de vida tratando-as como pragas que ameaçam a produção de alimentos e a sobrevivência da população. Cria-se, assim, um ciclo de produção e combate a organismos vivos em consequência do desequilíbrio provocado. Trava-se uma guerra permanente contra um inimigo fabricado.
As mudanças constantes no mundo natural, segundo as estações do ano, o comportamento das chuvas e dos ventos, a ação vibrante do sol e a sombra escura da noite recebem uma dose perigosa da ação humana. A mistura de todos os elementos que atuam sobre os seres vivos afeta sua saudável sobrevivência e compromete sua reprodução. Com sagaz ironia, diz-se que há mais pessoas frequentando farmácias do que restaurantes.
Em que foram transformados os 45 hectares per capita que respeitavam os equilibrados limites de reprodução da biodiversidade original e davam à pequena população o conforto da natureza não contaminada? Ao “homo cerratensis” foi imposta, pelas políticas econômicas autoritárias e despóticas, a severa e irresistível adaptação aos preceitos tecnológicos do crescimento a qualquer custo em nome do discutível conforto igualitário. O novo habitante foi desorientado a renunciar ao fluxo das águas cristalinas em favor do sonho de um lago poluído e do aterramento de centenas de nascentes. Foi induzido a desprezar milhares ou milhões de árvores, arbustos e flores do cerrado e sua imensa população de aves, insetos e animais em troca de alguns parques malconservados e inacessíveis aos milhões de novos habitantes. O Distrito Federal conta com 68 parques e 21 unidades de conservação ambiental, mas  não há neles equipamentos adequados de lazer para a comunidade. Nem todas essas áreas possuem registros fundiários e, por isso, são invadidas por mercadores de terra.
Os povoadores de Brasília foram forçados a trocar as agradáveis caminhadas sob a sombra de angicos e jatobás, aroeiras e jacarandás por enervantes engarrafamentos no trânsito desumano, iludidos pelo conforto de habitar durante algumas horas do dia uma caixa de lata ouvindo o som de gritos musicados.
Implantou-se e consolidou-se a desigualdade geográfica e ambiental, e a desigualdade na interdependência dos seres vivos com atitudes e comportamentos irracionais da espécie humana. Faltou espaço e alimento para milhares de espécies. O espaço foi modificado e o alimento natural das espécies originais substituído por cultivos protegidos por inseticidas e venenos que dizimam vidas e afetam a saúde humana.

Compensações

Diante dessa realidade, cria-se a lei das compensações. Monoculturas da produção agrícola e monoculturas da construção civil se comprometem “pro forma”, em contrato, a compensar, isto é, a neutralizar a destruição ambiental, o desaparecimento de aves e insetos com ações posteriores nem sempre cumpridas. O controle sobre a efetiva compensação, além de difícil, nem sempre é feito por deficiência institucional, o que significa que não é levado a sério pelos grandes ou pequenos agricultores e empresários da construção civil.
Restringindo estes comentários ao Distrito Federal e áreas adjacentes que compõem a região metropolitana de Brasília, alguns dados são impressionantes, mas aos quais pouca atenção é dada. Segundo estudos da Comissão do Senado brasileiro para redução das emissões de CO2, por automóveis, os cálculos simulados de emissão de poluentes com combustível fóssil de um carro/ano apontam para um volume de 120g por quilômetro rodado. Para compensar os efeitos unicamente dessa fonte de poluição do ar e suas consequências na saúde humana e dos demais seres vivos pelo uso de um automóvel durante um ano, (450km) seria necessário o plantio de oito árvores. Elas teriam a função de, pela fotossíntese, transformar o dióxido de carbono em oxigênio. Essa ação compensatória não parece estar na mira dos proprietários de automóveis e de companhias de aviação. Tais atividades são cobradas do Estado como se o cidadão não tivesse a responsabilidade sobre seus atos predatórios contra a natureza.
Utilizando os índices de queima de combustível fóssil, acima mencionados (120g de emissão por km ou 1,2 kg por 10 km rodados), o milhão de automóveis que circula diariamente no DF percorre uma distância de 10 milhões de km/dia e produzem, no mesmo período, 1,2 mil toneladas de gás carbônico (1,2 milhão de kg/dia). Feitas as devidas contas, a compensação importaria no plantio de 7, 3 milhões de árvores. Infelizmente, o que se observa no DF é exatamente o contrário: a devastação sistemática do cerrado.

Empobrecimento ambiental

A devastação de mais da metade da área do DF significa a perda da capacidade de produção de oxigênio e de limpeza do ar e das águas. O DF empobreceu ambientalmente nos últimos 50 anos e continua sua sina de empobrecimento ao retirar todos os dias esse poder da natureza. A prática generalizada na ocupação dos espaços do cerrado, visivelmente observada, constitui de limpeza prévia da área, desmatamento, terraplanagem, queima sistemática, introdução de bovinos, construção de casa e currais ou pocilgas. Nenhum estudo, nenhuma informação sobre o bioma, nenhum indício de previsão e prevenção contra os efeitos do período seco e das chuvas torrenciais dos meses úmidos, nenhum cuidado com as nascentes, nenhum respeito pela vegetação protetora do solo ou pelas aves, insetos e animais que compõem a biodiversidade da qual ele faz parte. O novo habitante começa por empobrecer o espaço em que pretende viver e ser feliz. Impõe, por ignorância, sua vontade de viver sem ouvir a natureza e os seres vivos com quem poderia conviver. O custo ambiental dessa devastação para a vida do cerrado e o habitante humano é incalculavelmente superior aos supostos benefícios imediatos. “O estudo da natureza é o alfabeto da agricultura e nenhuma palavra dessa grande vocação pode ser escrita sem ele” (Anna Botsford Comstock, The Teaching of Nature Study, 1911).
Uma árvore absorve 2kg de gás carbônico por hora e produz, no mesmo tempo, 2kg de oxigênio. Um hectare de floresta pode reter, num dia, 32 toneladas de poeira tóxica produzida por automóveis e construtoras e devolvê-la em oxigenação limpa. Os 291.110 hectares subtraídos de sua função, no DF, empobreceram o ambiente da capital federal em 9,3 milhões de toneladas de oxigênio retirando a mesma quantidade de CO2. Uma perda irreparável.
A mesma perda se constata na diminuição dos volumes de água em consequência do desmatamento e da urbanização intensa para atender ao fluxo de populações imigrantes desrespeitando a capacidade de suporte dos espaços físicos. Com menos vegetação, os períodos chuvosos, com precipitações intensas e abundantes, causam erosão do solo e assoreiam os rios. Retirou-se do ambiente a capacidade de captar e reter as águas da chuva para a recarga dos aquíferos subterrâneos, Nem se desenvolveu a compreensão da importância da água que inspirasse a implantação de sistemas de sua captação e retenção no meio rural e nas cidades.
O ritmo de ocupação dos espaços no DF indica que é simplesmente impossível executar os compromissos de compensação para neutralizar os desastres praticados no ambiente. Não há mais espaço para o plantio de árvores a não ser que se mude radicalmente a prática de devastação da natureza para assentar a população urbana crescente.
Rachel Carson (1907 - 64), propulsora do movimento ambientalista moderno, adverte: “O mais alarmante de todos os assaltos do homem sobre o ambiente é a contaminação do ar, terra, rios e mar com materiais perigosos e até letais. Essa poluição é em sua maior parte irrecuperável; a cadeia de males que ela inicia não somente no mundo que deve sustentar a vida, mas nos tecidos vivos, é em sua maior parte irreversível” (Silent Spring, 1962). E Albert Schweitzer, nos confins do Gabão, na década de 1960, sobreavisou o mundo: “O homem perdeu a capacidade de prever e prevenir. Vai acabar destruindo a terra”.

Desmatamento e violência

A origem da violência humana contra a própria espécie nas cidades e entre países, convenço-me mais e mais com as evidências, tem sua origem no desmatamento, na derrubada de árvores, nos maus tratos à água, no desprezo aos insetos e animais. A faca, a foice, o machado, a motosserra, o revólver, a metralhadora, o canhão, as bombas assassinas são parentes próximos. Quem se acostumou a derrubar florestas e a escravizar animais fez dessa valentia um princípio de dominação que afronta a natureza e subjuga a própria espécie humana. Esse espírito de conquista se tornou uma epidemia nas relações sociais, políticas e econômicas. Esse princípio vem camuflado por palavras determinantes: coragem, competitividade, cooperação, realização pessoal, liderança, poder. O homem se dá o poder de derrubar uma pessoa, uma instituição, um governo com a mesma convicção que pôde abater árvores gigantescas e centenárias.
Estudar a natureza, ouvir as árvores, compreender a vida real de todos os seres, perceber que a espécie humana é parte integrante de um universo de interdependências é a melhor forma de controlar os ímpetos da agressividade e da violência para sobreviver no planeta que acolhe a todos.

Eugênio Giovenardi
23.5.2013

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