Heringuerianas
Texto de Aylê-Salassié - Jornalista, professor,
doutor em História Cultural.
Este
texto vem a propósito de uma grave omissão na reportagem escrita por Pedro
Grigori, na edição de 6 de maio (domingo), do Correio Braziliense, com o título
: “[...] Heróis do Cerrado”. Sequer foi lembrado
o nome do botânico Ezechias Heringer , descobridor de várias espécies , criador
do Parque Nacional de Brasília, de mais duas ou três reservas de proteção do
ecossistema e um dos poucos a visualizar as potencialidades das terras do
cerrado.
Cientista consagrado, foi o maior estudioso da vegetação
do Brasil Central, e um dos últimos exemplares de
uma categoria chamada de “naturalistas”, marcada pelos estudos de
Von Martius, Saint Hilaire, Peter Lund, e nativos como Carlos Rizzini, Murça
Pires, Graziela Barroso, Guido Pabst, Pio Correa, Armando de Mattos e João
Moogem .
Esquecido pelas jovens correntes da ecologia que se iniciavam
na Universidade de Brasília nos anos 70/80, o professor, emérito,
agrônomo de formação, botânico e silvicultor por opção, morreu no Lago Norte,
aos 80 anos . Deixou uma extensa obra sobre a flora do
cerrado. Foram trabalhos desenvolvidos, na sua maioria, juntamente
com membros dessa desaparecida comunidade de naturalistas
brasileiros. Algumas pesquisas não chegaram a ser concluídas à tempo,
e outras foram apropriados por estranhos, aproveitando-se da extrema modéstia
de Heringer.
Na condição de um dos primeiros guardas florestais do Parque
Nacional de Brasília (Água Mineral), e estudante do científico
noturno do Elefante Branco, era convocado para acompanhá-lo nos estudos de
campo. Tive verdadeiras aulas de Botânica e Sistemática, em pleno cerrado, com
o material que ele acabava de coletar. Sua avidez era de
um adolescente. Cruzando com tamanduás, lobos guará – chegou a encarar uma onça
- enfrentava o desafio do tempo e das trilhas abertas no cerrado pelos
bandeirantes e carros de boi, à busca de material botânico
desconhecido e original.
Tornara-se conhecido
por traçar o roteiro botânico do Grande Sertão Veredas, de Guimarães
Rosa. Seguindo por esse caminho, descobriu e descreveu várias espécies do
cerrado. Na área conhecida hoje como Parque do Guará, ele encontrou o fóssil de
uma espécie extinta. Fez inúmeras experiências de reprodução com nativas e de
introdução de exóticas em terras do cerrado. Os plantios mais
antigos de eucalipto na Região Centro-Oeste foram todos iniciados em projetos
de pesquisas dele. Administrou os viveiros que forneceram espécies
da flora para o paisagismo de Brasília. Criou o Parque Nacional e
indicou a necessidade de mais duas ou três reservas naturais no Distrito
Federal para proteção de ecossistemas ameaçados, propostas abrigadas, com
entusiasmo, pelo prof. Paulo Nogueira Neto, então Secretário do Meio Ambiente.
Nos fundos da casa do professor Heringer, na Avenida
W-3, havia um quarto cheio de fragmentos botânicos, troncos retorcidos, flores
secas, livros, microscópios, exsicatas e outros materiais
usados para a classificação das plantas. Só ele entendia daquilo. Estudava carinhosamente
cada amostra, repassando os registros para a arte pictográfica da habilidosa
desenhista brasiliense Maria Werneck. Ambos deixaram dezenas
de trabalhos apócrifos. Não tinham a veleidade de guardar
informações sobre as espécies ou pesquisas em
desenvolvimento. Todas as coleções de orquídeas do cerrado, existentes hoje no
Distrito Federal foram iniciadas pelo dr. Heringer. Coletava os exemplares,
descrevia-os, e os reproduzia num viveiro particular, doado para o Parque
Nacional, onde foi dilapidado.
É preciso enfatizar que a presença do dr. Heringer no Planalto
Central precede à de todos os botânicos, biólogos e ecologistas. Como chefe da
Horto Florestal de Paraopeba (MG), veio a convite do Presidente Juscelino
Kubitscheck. Em 1958, ele pediu
ao professor Heringer um estudo detalhado sobre a flora e
a fauna da área onde iriam ser iniciadas as obras de construção de Brasília. O
dr. Ezechias veio, e não voltou mais para Minas Gerais. Aqui recebia
naturalistas e pesquisadores de várias partes do mundo, e participava, com
eles, de incursões pelo cerrado.
O reconhecimento da
sua contribuição para o estudo botânico e a proteção do cerrado no DF está
inscrito em vários trabalhos publicados em revistas já desaparecidas, e outros
no exterior. Em sua homenagem, os naturalistas Pabst, Rizzini,
Mattos batizaram espécies novas do cerrado com o seu nome: são
as heringuerianas.
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