segunda-feira, 17 de março de 2014

ONDE A VIDA É GASTA I


 
Vida, no contexto dessa frase, é sinônimo abstrato de tempo, tranquilidade, ansiedade, preocupação consciente e inconsciente, aborrecimento, indignação ou felicidade. Há sempre alternativa. A vida é uma medalha de duas faces e a probabilidade de uma alternativa é de meio a meio. A vida é alternativa à morte. A alternativa está presente a cada passo. Da hora de acordar à hora de deitar.
O transporte urbano, por ser caótico nas médias e grandes cidades, ganhou categoria abstrata e sociológica – mobilidade. É um dos vilões que consomem a vida do cidadão.
Distingue-se, nesse quesito, alternativa de opção. Alternativa é ir ou não ir. A decisão depende de opções. Ir ao cinema na sessão das 19 horas é uma decisão aalternativa que depende de distintas opções. Em Brasília, a hora pico é inconveniente. Arrisca-se de ser prisioneiro do trânsito por tempo igual ao da duração do filme. E para certos cinemas, por sua localização, a opção do transporte não é determinante. Nem o ônibus, nem o metrô, nem o carro individual são capazes de dar a este pedaço de tempo e vida o prazer que antecede o filme em perspectiva. O tempo gasto no trânsito equivale ao consumo de vida.
A diarista que precisa vencer vinte e cinco quilômetros para chegar ao local de trabalho, premida pelas contas a pagar segundo suas opções de consumo, sente-se constrangida a ir. Não se dá a liberdade de não ir. Das 24 horas de vida, gastará seis divididas entre o trajeto da casa à parada de ônibus e ao ponto de chegada de volta ao lar, ao final do dia. Mais da metade da vida desse dia será gasta no trânsito e no trabalho que ela justifica pela remuneração satisfatória em razão das contas a pagar: prestação da casa, condomínio, energia, água, alimento, vestuário, diversos impostos diretos (IPTU/SLU), TV, celular, remédios controlados, transporte, taxa escolar, supermercado, reparos da casa, etc...
Diaristas e milhões de trabalhadores gastam a vida – o tempo – como colaboradores inconscientes do crescimento econômico impulsionado pelo consumo. O trabalho, nessas condições, alimenta o consumo que sustenta o crescimento econômico apurado pelo PIB. O PIB só não mostra o gasto da vida do trabalhador.
Conclusão desanimadora: gasta-se a vida para sustentar o lucro do crescimento econômico concentrado em poucas mãos.

ONDE A VIDA É GASTA II

 Cada pessoa ou grupo de pessoas se acomodam a um modelo que lhes é imposto pela convivência social. O que se vê e se ouve é inconscientemente praticado. Raros são os que escolhem o modelo de vida. E não há modelos puros. É imposto tal qual é vivido num tempo e por um grupo que nos antecede.
A diarista, o proprietário do insubstituível automóvel, o funcionário público, o empresário idealista, o escritor, todos caíram na arapuca preparada há tempos. A diarista caiu na arapuca. Qualquer um cai. E só percebe quando sair dela é quase impossível, ainda que a gripe, o diabete, a hipertensão conspirem contra ela.
Poderia trabalhar em local próximo a sua casa sem o desgaste do trânsito, com salário menor. Mas o modelo que adotou recusa mudanças. Submete-se ao modelo e gasta a vida nele.
O sonho do automóvel zero quilômetro também é imposto. O dono será dele vitima e escravo. Sua felicidade está no carro. Vive o carro em vez de viver a vida. A utilidade do material justifica a queima de combustível fóssil, a emissão de carbono e, principalmente, o lugar de destaque no grupo. Sente-se vitorioso não por ter compreendido o universo de sua existência, mas porque o carro o distingue e o aplaude.
Há uma reciprocidade entre o modelo e o usuário. Um alimenta o outro. Um sustenta o outro. Mudar o modelo é mudar-se. E mudar-se exige um ato de consciência diante da própria vida e a dos que nos cercam. Mudar-se é o ponto alfa da revolução consciente para compreender o universo que habitamos.

16.3.2014 
Nota: Sou ecossociólogo, naturalista e escritor. Administro uma área liberada da opressão industrial e da tirania do consumo obsessivo. Reserva natural de cerrado de 70 hectares (Sítio das Neves) para refúgio de variada fauna de ar e terra, reprodução espontânea da flora nativa (3.500 espécies), proteção de nascentes e recarga de aquíferos com captação e retenção de águas pluviais. Estudo a ocupação do espaço e a organização de algumas espécies da biocomunidade (mangabeiras, caliandras e catolé).


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