sexta-feira, 28 de março de 2014

ANARQUISMO LITERÁRIO


 (Palestra proferida na Associação Nacional de Escritores)

Estas reflexões e comentários nasceram da observação e exame da imperiosa necessidade que pessoas como os escritores têm de declarar seus pensamentos e oferecê-los aos outros. Os fatos que acontecem ao seu redor, sem sua presença, ou os que têm sua participação não podem perder-se no silêncio. Há que divulgá-los, comentá-los, neles pôr sentimentos, poesia, ironia, humor.
Cabe, inicialmente, um esclarecimento sobre o título Anarquismo Literário. O termo (do grego an+arkhé=sem comando) foge à semântica política, à sintaxe do poder e ao simbolismo da organização social em sua vasta extensão. Refiro-me à estrutura cerebral anarquista do escritor e não à utopia anarquista de um escritor. Não é anarquismo na literatura, mas literatura livre de comandos, criativa e evolutiva. Ressalto a essência anárquica do escritor que revela pela palavra o que seu cérebro descobre.

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Os escritores compõem uma nação global. Regem-se com independência e liberdade, em qualquer país, em qualquer idioma. Formam a frente única da palavra, carimbo que identifica e distingue o homo sapiens de todas as demais formas de vida do planeta. A censura tem impedido a leitura, cortado mãos, mas não calará o pensamento.

No contexto proposto, desejo apenas sublinhar a independência, a autodeterminação e a liberdade arbitral de expressão do pensamento do escritor. Neste sentido, é anárquico. Não tem patrão nem governo além de sua consciência.
Não se há de estranhar, por isso, rebeliões contra a sintaxe, a regência de verbos e preposições, a fonética, a grafia ou contra o gênero literário dominante. Tentativas autoritárias também surgem no reino da gramática, do léxico, do calepino e na grafia da palavra. Há que aceitar que todo idioma, falado ou escrito, não será o mesmo em um século como não o foi a cinco.
Tem-se uma folha em branco e nela imprimem-se ideias, pensamentos, usando a mais poderosa arma – a palavra – sem proselitismo, livre das grades do gênero e da simples venda de receitas de felicidade.

O anarquismo está encravado nas raízes do desejo e da necessidade interiores de se religar ao outro que pertence ao mesmo corpo cultural, à mesma espécie dialogável, sem abdicar da autonomia. Está, ao mesmo tempo, relacionado à impotência, se não à frustração, de não conseguir expressar por inteiro e com intensidade verbal adequada os sentimentos que o cérebro produz.
A palavra, por vezes, é impotente, menor do que a grandeza do sentimento gerado nas circunvoluções cerebrais. A palavra não raro é infiel ao pensamento que o cérebro produz numa fração de segundo. Quando se busca a palavra o sinal se perde.
Apela-se, então, para a lágrima, o sorriso, o gesto, o Grito de Munch, à gargalhada do palhaço. Mais ainda. O impulso incontido de arrancar o pensamento das profundezas do cérebro se ampara, frequentemente, num estimulante exterior (droga ou álcool) capaz de liberá-lo das próprias amarras e das alheias para interpretar seus hieróglifos mentais. (O estado etílico de Elizabeth Bishop é apenas um caso entre milhares).

No ano passado, neste recinto, ouvimos, entre outros, Edmilson Caminha, Danilo Gomes, Anderson Braga Horta, José Rivera, João Carlos Taveira, Fábio de Souza Coutinho abordando e escavando as profundezas literárias de autores célebres, sua vida atribulada, suas angústias, seus truques originais para enganar e exorcizar os mil demônios que assolam o mundo e a mente das pessoas.

É divertido e até agradável especular sobre o que Machado de Assis quis ou não quis dizer, se Capitu deu ou não deu. Dar ou não dar, eis a questão.
Guimarães Rosa encontra no homem original, na periferia cultural da sociedade, inspiração para plasmar palavras, expressar sentimentos e vencer as barreiras da competição estabelecidas pela gramática social. Seu anarquismo literário criou seu estilo e sua estética comunicativa inimitável. Por isso sobrevive na lista dos que ultrapassaram o som de sua época.

Oscar Wilde (A alma do homem sob o socialismo), Victor Hugo (Os miseráveis), Graham Green (O terceiro homem) são exemplos, entre os grandes, de independência e liberdade literária escolhendo o tema e definindo o estilo.

Essa driblagem da semântica, da sintaxe, da fonética, essa virtude anárquica de ser dono de suas ideias e significados, de interpretar arriscadamente o comportamento alheio, de maquilar o próprio e preservar sua forma de expressão, faz do escritor um permanente desafio à crítica, aos rascunhistas de livros, aos editores e aos leitores.

É importante lembrar que os escritores de ontem e de hoje não são neófitos na arte de expressar o pensamento, relatar fatos com o toque da individualidade e da originalidade.
O escritor está na praça há, pelo menos, 40 mil anos. “O homem entrou (no universo) sem ruído”, sugeriu Teilhard de Chardin. Apareceu no meio de outras espécies que já ocupavam o universo. Pressentindo a continuidade milenar da espécie humana, colegas ainda iletrados deixaram ilustrações plasmadas nas cavernas, desde a simples e comovente impressão da mão direita na gruta de Roucadour ou desenhos na de Chauvet, a símbolos que identificavam seus feitos, seus sucessos, suas peripécias, suas tentativas de entender o universo, suas esperanças indefinidas. A linguagem rupestre conta a epopeia da sobrevivência, as vitórias do homo sapiens, ao longo de sua trajetória, sobrepondo-se às outras linhas evolutivas das quais compartilhava.

Desde cedo, o homo sapiens compreendeu que precisava de outros seres vivos para sobreviver e se reproduzir. Mas, principalmente, precisava de outros indivíduos semelhantes a ele para formar um grupo capaz de lançar-se, com a cooperação dos outros, à competição social.

Não se sabe em que circunstâncias e em que momento, ao longo de milhões de anos, o cérebro do homo sapiens tomou consciência de si, de ser, do próprio eu e dos outros eus.
Esse milagre cerebral marcou o momento histórico da virada. O homem saiu da pré-história e começou sua história. O homo sapiens descobriu-se e se identificou no outro que fugia dos mesmos perigos, abrigava-se das chuvas e dos ventos para sobreviver e reproduzir a espécie.
A evolução da espécie humana tomou um tremendo impulso quando a comunicação entre os eus se consubstanciou pela emissão da palavra. Por meio de vocábulos se consolidava o conhecimento do universo e se efetivava sua transmissão ao grupo mais próximo. Entrava o homo sapiens na fase avançada da identificação e nomenclatura das coisas e das pessoas.
Hoje, o planeta está povoado de pequenos grupos, de grandes grupos, de sociedades complexas, em permanente e indisfarçável cooperação e competição social. A estas se agregaram, milhares de anos mais tarde, a cooperação e a competição econômica, empresarial e tecnológica pela via do poder político sob os auspícios do poder religioso.
A sobrevivência do escritor depende de sua atitude cooperativa e competitiva dentro do grupo ao qual se une e entre os grupos que o cercam.


Dirijo-me, nesta conversa, ao grupo da ANE composto de vários grupos. Nesse grupo maior, nem todos se conhecem. Nem todos me conhecem. Grupos invisíveis se formam por afinidades de pensamento, mesmo que os componentes estejam distantes ou desaparecidos no tempo.
O escritor, em sua solidão ontológica, está cercado de grupos que formam, cada qual, um tipo especial de competição social na produção e sobrevivência literária: 

ESCRITOR OU
GRUPO DE ESCRITORES
EDITORES
LEITORES
CRÍTICOS
LIVREIROS
ANE
OUTRAS
ASSOC.
NÃO LEITORES
 

      O diagrama mostra a ANE e grupos de escritores com sua idiossincrasia e relacionamentos específicos, visíveis e/ou invisíveis, com vivos ou com mortos. Não seria de estranhar que se manifestassem controvérsias, rebeliões mentais, oposição a decisões dentro e fora da ANE por grupos que a compõem. O princípio anarquista da mente comunicativa persiste no processo cooperativo por força da competição social para sobreviver num grupo cercado de grupos.

Cada escritor ou grupo de escritores afins são cercados pela própria associação ANE e por:
Grupos de escritores que pertencem a outras academias e associações de cooperação e competição literária.
Grupos de leitores que expressam suas preferências e acirram a competição social do escritor.
Grupos de críticos ou pretensos críticos literários que, consciente ou inconscientemente, favorecem escritores e enfraquecem outros.
Grupos de livreiros para quem o livro é um produto comercial como a batata ou o caviar com seu marketing específico.
Grupos de editores que veem no livro um investimento lucrativo ou ideológico.
Grupo vasto de não leitores para os quais o escritor é um espírito invisível e, o livro, um misterioso retângulo fabricado em série por máquinas inteligentes.
Cada grupo tem suas regras, seus códigos, seu juízo de valor. Há que se livrar de todos eles para escrever. Mas há que, de alguma forma, dialogar com todos eles para ser lido ou ouvido. Competir com eles para sobreviver.

A OBRA


Acuado por tantos grupos, o cérebro do escritor emite comandos, planeja ações, cria personagens, controla seus comportamentos, é juiz, réu e polícia. É pai e mãe. Premia e castiga. Entra em êxtase poético ou deprime-se ao olhar estrelas sem poder alcançá-las. Denuncia injustiças, propõe armistícios. É esta virtude anárquica que faz a grandeza do escritor. O anarquismo do bem, na linguagem do maniqueísmo político moderno.

Pratica esta virtude quando escreve. E, quando escreve, se denuncia e, no meio da denúncia pessoal, inclui a denúncia coletiva. Desnuda seu eu para que outros eus o vejam, o percebam e o ouçam. Por isso, nem sempre sabe se o personagem retratado é o próprio escritor travestido de personagem. Se o autor cria o personagem ou se o personagem denuncia o autor.

O crítico do romance MEMÓRIAS DE ADRIANO, de Marguerite Yourcenar, lhe perguntou: “Adrian est-vous, n’est-ce pas?” Ou seja, a romancista foi, por algum tempo, a augusta imperatriz de Roma e pôs nos comportamentos e atitudes de Adriano seus desejos e expectativas.

Como sou um escritor plebeu recém-chegado à ANE e desconhecido da maioria, um infiltrado na manifestação literária, me foi proposto comentar a trajetória de minha obra. Surgiu-me, então, ligar uma forma de anarquismo à literatura.

Se me permitem, revelo algumas circunstâncias de meus romances, que são parte preponderante de meus escritos, marcados pela transgressão a regras e costumes. Uma propensão inata à justiça e à equidade suscitou em mim, desde a infância, uma tendência à rebelião para manter a mente livre e independente. Todos os esforços institucionais para convencer-me a aderir a regras formais, seja de religião ou de partidos políticos, desvirtuaram-se diante da soberania libertária da mente. Considero-me, hoje, um cidadão livre de comandos.
A rebeldia, portanto, em meus romances e nos outros escritos socioambientais, é uma característica mental de contestação e ênfase ao que não parece justo, equitativo, coerente, racional. Logo adiante, me referirei mais precisamente à transgressão.
Um breve relato sobre meus seis romances.

1)     OS FILHOS DO CARDEAL – Meu primeiro romance, no qual sou personagem e escritor, foi publicado em 1997, aos 63 anos, escrito durante vinte anos (1977-1997). Na segunda edição tomou o título de O homem proibido –De fundo autobiográfico, o personagem deixa seus grupos básicos, familiares e sociais, rebela-se contra todos os códigos que conduziram e controlaram sua mente e vontade até os 30 anos de vida. Transgride todas as regras definidas por outra cultura e recupera seu próprio eu. Abandona sua Igreja, rompe com Deus e com a fé. O personagem é o escritor com falsa identidade. Uma biografia críptica. Um relato de fatos não lineares. Uma biografia autorizada.

2)     EM NOME DO SANGUE ( escrito entre 2000-2002). O personagem – sacerdote católico – é estimulado a transgredir as regras e códigos que o impedem de expressar sua identidade homossexual e reprimem sua sobrevivência social. É a guerra dos eus superiores contra os inferiores. A sociedade impõe suas regras e o pune com morte violenta. É a realidade cotidiana multifacetária. O livro ganhou o Prêmio Açorianos de Literatura 2003, pela Casa do Livro de Porto Alegre.

3)     AS PEDRAS DE ROMA (escrito entre 2003-2009). O chefe supremo da maior empresa religiosa do mundo competitivo se rebela contra as muralhas dogmáticas que o aprisionam. Enfatiza, na Renascença, os símbolos da arte que são anteriores à superstição, definida por Lucrécio em seu poema De rerum natura. O personagem agnóstico propõe que a religião não precisa provar a existência de Deus. Deus não pensa. Pensar é próprio do homem. Mas a religião é uma das fontes de inspiração da arte e da literatura. O personagem permite ao autor governar o Vaticano por seis anos.
4) HELIODORA (escrito e publicado em 2010), o personagem deixa sua terra, sua família, sua cultura para continuar, em Brasília, a escalada migratória que se iniciou na África há 70/80 mil anos. O imigrante perde seu chão natural e emocional, seu pedaço de céu estrelado, seu berço, seu vizinho, suas festas. É excluído de sua própria terra. Afinal, somos todos migrantes, emigrantes e imigrantes e a vida vai conosco a frente.

5) SILÊNCIO (escrito e publicado em 2011). O personagem se dá o direito e o prazer de falar com seu próprio eu, de caminhar seu caminho, de compulsar sua solidão ontológica, de sentir-se ingenuamente superior aos medíocres e surpreender-se um cidadão invisível, desconhecido, um mero contribuinte. O Homo sapiens transformado em homo contribuens.

6)     O ÚLTIMO PEDESTRE (escrito e publicado em 2013). O personagem (ou o autor) é escravo de um sistema anárquico governado por um grupo superpoderoso da sexta economia mundial que decide o que é bom para a sustentação do poder político confundido com a felicidade de todos os eus da mátria. O personagem vive e morre, a 50 km do Palácio do Planalto, asfixiado pelos gases do gueto em que está trancado. Seu desaparecimento do cenário da competição social não é notado nem faz falta.

A competição social em que a espécie humana está envolvida é um complicado processo de enganação no qual enganamos os outros e os outros nos enganam. Manipulamos com perfeição este mecanismo cerebral. Mentimos desde a infância. Aprendemos a mentir com os pais, tios e tias. Mentimos com as mãos, com os olhos, com o sorriso, com palavras e isto nos ajuda a escrever mentiras em forma literária. Romance, por definição, é uma mentira longa.
O escritor é mentiroso e enganador por sua própria natureza, por infidelidade cerebral, isto é, não consegue expressar com a palavra a pureza do pensamento. Qual é a verdadeira fotografia literária do escritor? A que ele divulga ou a que o leitor vê?
A espécie humana é a mais mentirosa do planeta. Nosso cérebro é um exímio jogador e conta com o intrincado enredo de suas circunvoluções. Deleita-se a inventar e a criar. O humor é uma das mais prazerosas manifestações do cérebro. A piada, a anedota, o chiste é expressão exponencial da comunicação humana para contrabalançar a sisudez da verdade aparente. O conselho de Voltaire foi seguido pela espécie humana muito antes que fosse por ele proposto: menti, menti, alguma coisa permanecerá...

Uma característica da espécie humana, deste ser chamado homo sapiens, é sua agressividade na luta pela sobrevivência e reprodução. Sua energia vital, de pensar, de querer, de amar, de se dedicar ao outro é também suficiente para inventar artefatos de destruição (criatividade destrutiva), não só das formas de vida que a natureza lhe oferece para sobreviver, como de aniquilamento cruel da própria espécie humana.

A agressão, a regressão, a transgressão e a digressão estão presentes de maneira anárquica na literatura. O homo sapiens é agressor, transgressor, digressor, regressor. Talvez, por isso, traga em si o germe da mentira inventiva. Se o poeta é um mentiroso (Fernando Pessoa) e o escritor, um enganador compulsivo, ambos sabem disfarçar esses impulsos agregando humor, ironia, raiva, indignação, tolerância, amor. Torna-se ao escrever um enganador perfeito e um mentiroso virtuose. Engana-se e engana os outros. Mente a si e mente aos outros sob a forma de muitas e variadas verdades.

E quem não mente? Mente o pai, a mãe, a tia, o avô. Mente o professor, o político, o economista, o deputado, o senador, a presidente, o padre, o pastor, o papa. É a válvula de escape da sobrevivência para pedir cooperação aos outros e vencer a competição dos outros.

Mas sempre existe a surpresa no flagrante de mentira.
Um diz: Desculpe, não foi isto o que eu quis dizer...
Outro: Fui mal interpretado...
Um terceiro: A frase foi colhida fora do contexto...
Finalmente, o acusado mente descaradamente quando diz: Tudo não passa de uma deslavada mentira...

Talvez a única expressão real, objetiva diante do dizer humano seja: é inacreditável.
O ceticismo faz parte da curiosidade e da inventiva humanas. Pode ser até que a mentira seja o outro lado da verdade.

Com isto quero dizer que o escritor registra a caminhada humana espelhando-se na largura de seus próprios passos e marca a evolução de suas ações cercado de uma variedade de formas de vida, de uma riquíssima biodiversidade na qual se incluem as árvores, os insetos, os pássaros, os mamíferos e, entre eles, o homo sapiens. O que poderia ou deveria ser, mistura-se ao que é. A objetividade é dissecada pela subjetividade. E a escultura sai à nossa imagem.

Somos gerados ao azar. E como escritores, contamos as peripécias e os vacilos do azar anárquico dos movimentos da sociedade na qual competimos para sobreviver e nos reproduzir. Para isso, inventam-se personagens físicos ou simbólicos que se confundem com o eu do escritor. Por vezes, esse personagem se mascara em flor, em vento, em amor, em inveja, em ciúme, em crime, em noite, em lua, em estrelas. E cansado do inferno, Dante convida Virgilio:
Uscimmo a riveder le stelle.(Dante, Inferno)

A espécie humana tem essa faculdade única da palavra para dizer o que pensa, o que não pensa, o que gostaria de pensar, o que pensam os outros e o que não pensam.

É nessa floresta que caminha a espécie humana e é nela que escavamos a palavra mais adequada e o personagem mais apropriado para dizer o que somos.
Nessa floresta, o cérebro humano, aparelho admirável e complexo, pode fazer do homem um Alexandre Magno, um Stálin, um Hitler, um Mozart, um Gandhi, uma Thatcher, uma Teresa de Ávila, um Jesus Cristo, um Pelé, um Fernandinho Beira-Mar. Somos uma unidade humana variável.

Assim, passamos a vida a ver, perceber e compreender o outro em nós para nos unirmos a ele, defender-nos dele e, se for preciso, eliminá-lo do grupo. Somos regidos pela competição social que nos impõe truques de sobrevivência e de reprodução. Por isso mesmo e, contraditoriamente, precisamos dos outros e os outros precisam de nós. Anarquia plena.

Somos hábeis criadores de próteses. Utilizamos os outros, os leitores, para prolongar e ampliar nossa vitalidade. Terceirizamos nossa mente, nossos olhos, nossos ouvidos, nossos braços e nossas pernas. Utilizamos o que a natureza pode nos beneficiar por meio de outros seres vivos.
A polícia precisa do olfato do cão para descobrir a droga escondida no sapato do passageiro. Só quando o cão lhe envia um nosebook, o homem, que já perdeu quase completamente o olfato, pode ver a droga. O cão é a prótese pericial do policial.
Sobreviver como escritores é deixar descendência plasmada nos personagens criados e nas palavras inventadas. Sobrevivência e reprodução são forças imanentes. A competição social é um de seus truques mais eficazes. A competição social pela sobrevivência de grupos produziu o desaparecimento dos Neandertais e dos índios das Américas. Cometeu o genocídio nos campos de concentração, sem esquecer Hiroshima, Iraque, Palestina, Afeganistão, Ucrânia e demais catástrofes provocadas pela espécie humana.
Assim caminha a humanidade é um lugar comum que resume toda sua grandeza e baixeza.

Alegro-me de ter podido me dirigir a participantes deste grupo para quem a palavra é a única testemunha e juiz de sua identidade, de sua existência, de sua liberdade de ser o personagem descrito por si próprio.
Tenho orgulho de fazer parte desse grupo antigo de escritores que escreveu seu primeiro livro nas paredes das cavernas e que, ao longo de milênios, tem por missão perenizar na humanidade a cultura da palavra. O escritor é um vetor de esperança à evolução cultural da mente humana na perspectiva da paz e da liberdade.
Mais do que aviões supersônicos, mais do que armas químicas, mais do que Iphones e Ipads, o escritor inventa e semeia a palavra que democratiza a democracia, civiliza a civilização e humaniza a convivência humana.
Nossos descendentes, na reprodução da cultura, são os leitores, não importa quem, não importa quantos.

A história da literatura tende, inevitavelmente, ao anacronismo. Cada época reconstrói a experiência literária em seus próprios termos. Cada historiador reordena o catálogo dos clássicos. A literatura, enquanto isso, rejeita as tentativas de imobilizá-la no interior de esquemas interpretativos. (Robert Darnton)

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