“O mundo está quase todo repartido, e o que resta vem sendo partilhado,
conquistado e colonizado”, escreveu Cecil Rhodes (Últimas vontades e testamento, 1902). Palmo a palmo, metro a metro
de terras e mares não escapam ao ativismo antropocêntrico da espécie humana, ao
mesmo tempo esperançoso e destrutivo.
O avesso das manifestações
nas ruas do país dá sinais de surpreendente lucidez que suscita atitudes e
interpretações disparatadas, efeito do despertar súbito e inesperado dos donos
da verdade. As palavras de efeito vindas de todas as partes, a favor e contra, continuam
sendo as mesmas, como se esses meninos vão às ruas porque é hora do recreio e
logo voltarão á sala de aula. Os cidadãos, as conhecidas lideranças
tradicionais, nas academias, na imprensa, nos comandos econômicos, nas
organizações civis, na administração da coisa pública, deixam transparecer que
estão perdidos no meio do tropel que avança.
A lucidez da rua parece
infinitamente superior aos ocupantes de gabinetes, ministérios, tribunais,
câmaras legislativas, palácios presidenciais expondo ao ridículo a máquina
administrativa obsoleta. Parece até que o país recobrou o juízo. Por quanto
tempo esse momento de lucidez durará?
A força militar, equipada
para defender as fronteiras da pátria, treinada para matar se for necessário,
protege o patrimônio público e o status
quo com armas eufemisticamente ditas de efeito moral, que intoxicam
pulmões, cegam olhos, dispersam e confundem o grito da esperança, abrem buracos
no corpo de caminhantes. As regras, a prática e a pedagogia do diálogo, do
conversatório democrático e participativo atravessam ainda lentamente a fase do
homem-lobo.
Enquanto as esquerdas ficam
nos sintomas, “me dói aqui, me dói ali”, não têm a hombridade de apontar a
causa estrutural e mostrar o botão que faz funcionar o sistema de decisões que
os governos assinam com a ilusão patética de estar no comando do barco prestes
a naufragar. Os governos são reféns do dedo que aciona o botão do sistema que é
alimentado e alimenta interesses econômicos e financeiros que exercem o real
poder de decisão.
Os administradores públicos
sediados no executivo e no legislativo não demonstram nem vocação nem
capacidade para administrar populações. Sua especialidade é governo. Garantem o
funcionamento do sistema que os mantém no poder. Divertem-se em fazer
experimentos em áreas que pouco entendem.
Lembre-se a tomada da Bastilha.
Corria uma lista de 268 cabeças que deviam rolar. Simbolicamente há que
decapitar as inócuas, as incapazes, as cínicas, as parasitas.
Os novos administradores da
coisa pública precisam voltar-se para o século XXII com a missão de pôr
gradativamente o dedo no botão dos interesses da população, razão maior de
qualquer governo. No momento, o dedo de grupos de investidores está firmemente
no botão dos interesses próprios, escalpelando a população para benefício e
lucro imediatos.
Os governos ingenuamente ou
não entram no processo funcional desse sistema sem poder nem capacidade de
desativá-lo ou reorientá-lo. Quem não sabe que, no Distrito Federal, o botão do
sistema de decisões está com os industriais de construção civil e rodoviária,
aliados ao uso incentivado do carro individual que requer vias, viadutos,
pontes e estacionamentos?
Os governos pensam que
decidem, mas o fato é que apensas concordam, aceitam o que já vem pronto dos
escritórios do dono do botão que põe o sistema em funcionamento. Dizem sim ao
sistema e assinam as ordens de obras como se estivessem administrando a
população. Administram cimento, ferro, cascalho, madeira, tijolos, não
população.
Os líderes de esquerda deram importância à
ideologia e esqueceram-se da filosofia política e econômica. Sem conhecer as
causas profundas, ficaremos de manif em manif, de choro em choro, de sintoma em
sintoma. É nessa causa que devemos chegar. A causa produz efeitos e, por
enquanto, estamos atacando os sintomas. Será difícil chegar ao essencial, à
causa dos problemas econômicos e políticos, alimentando a equivocada filosofia
do crescimento econômico com decrescimento da capacidade social e participativa
de administrar grandes populações.
Mobilidade, plebiscito, referendum, suspensão
temporária de impostos para excitar o consumo, expansão urbana sem cuidados da
biodiversidade, biocomunidade, 39 ministérios, teleféricos sem saneamento, como
disse um rapaz de uma favela pacificada, pão sem participação são truques que
cansam o cidadão.
Todas as decisões são para parte da população.
Não importa qual parte. Nem sequer o bolsa família que é uma decisão puramente
burocrática, mecânica, instrumental, operada por meios eletrônicos é para todos
os necessitados, além de contemplar os que não se enquadram nos critérios
pré-estabelecidos.
A farsa da administração da
coisa pública está sendo posta à prova. Os arúspices, no término das sessões de
enganar incautos, ao encontrarem outros trapaceiros pelas ruelas de Roma,
perguntavam-se com escárnio: risum
teneatis, amici? Amigos, vocês conseguem conter o riso?
– – –
Nota: Sou sociólogo naturalista e escritor. Administro uma área liberada
da opressão industrial e da tirania do consumo obsessivo, uma reserva natural
de cerrado de 70 hectares (Sítio das Neves) para refúgio de variada fauna de ar
e terra, reprodução espontânea da flora nativa (3.500 espécies), proteção de
nascentes e recarga de aquíferos com captação de águas pluviais. Estudo a
ocupação do espaço e a organização de algumas espécies da biocomunidade
(mangabeiras, caliandras e catolé).
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