Graças ao aperfeiçoamento das estatísticas promovido pelo
IBGE, todos os movimentos sociais e os suspiros mentais dos cidadãos se
transformaram em percentuais. Esse órgão destrinchou a sociedade, a recortou em
fatias e a distribuiu em faixas de renda, ironicamente denominadas classes, que
vão de A a Z para não deixar ninguém fora de sua cadeira.
Pertenço, segundo minha própria análise psicoanalítica, à
velha classe média dos anos 60/70, de espírito e linguagem revolucionária na
mira das reformas estruturais. Tive o privilégio de participar com a multidão anônima,
pelas ruas de Paris, durante os “événements de Mai/68”. Víamos no bojo da contestação
peremptória uma nova civilização prestes a nascer das cinzas e dos escombros de
uma sociedade cultural amarrada ao autoritarismo econômico, político, educacional,
moral e social.
Queríamos libertar a sociedade presa à mão de banqueiros, de
latifundiários, de países imperialistas. Se Cuba pôde, todos os periféricos
poderiam declarar-se independentes e começar uma nova história. Até uma fração da hierarquia católica pôs em seus sermões a teologia da libertação comandada
por um Deus aliado às massas escravizadas e miseráveis.
Educação gratuita para todos, terra para quem nela trabalha,
participação no lucro das empresas eram pilares que justificavam a organização popular
sem medo de pegar em armas. Nossos líderes foram mortos ou envelheceram. Nossa organização
popular, desbaratada ou cooptada pelos vencedores.
A velha classe média, com seu espírito e linguagem
revolucionária, voltou à solidez de sua casa, aos bares e restaurantes de seus
bairros, a desfrutar de viagens pela Europa, América do Norte e China. Renovou-se
e aderiu às inovações tecnológicas da comunicação e do transporte. Espelhou-se
na irremovível classe A, lançou mão de seus privilégios culturais, reorganizou
sua fortuna, acomodou seus preconceitos religiosos, raciais e sexuais,
voltou-se para a ecologia e prega a sustentabilidade do crescimento econômico.
Confesso que me perdi dessa nova velha classe média e tampouco
satisfaço aos requisitos da novíssima classe média, extraída a fórceps do
Brasil profundo e compelida por um imperativo categórico da política generosa,
da economia saltitante e do marketing alegre a consumir carros e eletrodomésticos,
a financiar casas populares ou apartamentos de 40m2, sob a ordem
indiscutível da inclusão digital, longe de livrarias, cinemas e teatros.
Quase de repente fiquei perdido na rua. Não reconheço o
idioma da nova velha classe média, nem entendo os balbucios da novíssima classe
média acometida de indisfarçável síndrome de Down.
Sou daquela obsoleta classe média que comprava objetos para
durarem dezenas de anos. Que não mudava os móveis da sala. Que não derrubava
paredes da casa grande para modernizá-la. Que vivia duas ou três gerações com a
mesma louça de cozinha. Que usava ternos e sobretudos dos avós que os passavam
de pai para filho. Que usa lençóis comprados há mais de 40 anos e ainda
resistem com galhardia aos destemidos embates da noite.
Apreciaria compreender o que aconteceu com meus contemporâneos
da velha classe média e por quanto trocaram o espírito e a linguagem revolucionária
que modificaria o mundo. E suspeito que morra antes de assimilar a novíssima
classe média endividada, semianalfabeta, equipada de câmeras digitais, tablets
e iPads, lotando aviões, iluminando a sala do Teatro Nacional em noite de ópera.
Aquele maravilhoso mundo novo sonhado, diferente e possível,
aparece-me dissimulado, à noite, quando saio a ver estrelas.
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