sábado, 7 de agosto de 2010

O BRANCO DO LEITE

− Você quer trocar o branco do leite, me respondeu o senhor que viajava na poltrona ao lado no ônibus Grande Circular.
Contava-lhe de minha irritação com a diarista. Havia-lhe pedido o favor de tirar o pó dos livros da estante da sala. Dei-lhe as orientações necessárias para que recolocasse os livros no mesmo lugar e na mesma posição. Mostrei-lhe que o dorso deve estar para fora a fim de ler o título e o nome do autor. Colocá-lo de cabeça para cima. Indiquei fisicamente. Até exagerei um pouco. Mostrei a figura da capa. Não pode ser assim, tem que ser assim, virando e desvirando o livro.
O senhor me ouvia atentamente e me olhava com estranheza. E eu continuei.
− Hoje, fui pegar um livro de Clarice Lispector, A hora da estrela. Fiquei furioso. O livro estava de cabeça para baixo e com o dorso para dentro. Levei meia hora para encontrá-lo.
− A moça sabe ler? – perguntou-me o senhor.
− Sabe nada, respondi.
− Você que trocar o branco do leite, repetiu-me o senhor.
− Eu preciso da diarista. Mas ela põe as cadeiras em cima do sofá. O pano molhado no assento da cadeira. A tampa quadrada numa vasilha redonda. Eu lhe disse muitas vezes que a panela pequena vai dentro da grande e ela arruma a grande em cima da pequena. Mistura lixo orgânico com o seco. A lata de molho de tomate ela põe no lixo orgânico porque molho é comida. Ela tem mania de desinfetante. Toda semana pede marca nova que viu na TV. Mas ela faz um arroz com sabor de fogão de lenha. Só não gosto quando fala alto no telefone celular mandando o marido pagar a conta da luz atrasada. Ela fala muito no celular.
O senhor se despediu e saltou na rodoviária.
Na semana que vem, quando a diarista vier, vou me lembrar do senhor que ia sentado na poltrona ao lado no Grande Circular:
− Você que trocar o branco do leite.

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