sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

TESTAMENTO

Demiti-me de todas as funções,
de todos os empregos,
de todos os compromissos
que a esperteza do poder me havia convencido de tomá-los.
Compreendi que não é o Estado que cuida dos cidadãos,
mas a burocracia madrasta e sem rosto
que assina a certidão de nascimento
e o atestado de óbito
com a mesma indiferença.
Compreendi que nenhum regime pode se apaixonar
por um homem ou uma mulher
porque seria sua própria morte
ou condenação ao suicídio lento e silencioso.
Desisti de construir o socialismo para os que,
com seriedade fátua,
me dirão amanhã
o que devo e o que não devo,
o que posso e o que não posso,
e como pensar e como não pensar,
e o que é politicamente correto e o que não é.
Abandonei a ilusão de amamentar um regime
pelo qual teria que amoitar-me
para que ele fosse triunfante,
enquanto outros seriam perseguidos
ou abandonados por ele,
sempre com justificadas razões.
Percebi que todo ismo e qualquer partido
tem braços abertos para receber
e ferros reluzentes para atar mãos
e calar bocas.
Tenho enjôo quando ouço conclamações
para engrandecer a pátria
e detenho o vômito
quando prometem que a economia voltará a crescer.





Curei-me de revoluções.
Curei-me da obsessão do progresso.
Curei-me da febre do desenvolvimento.
Curei-me do dever doentio
de me pôr à esquerda de qualquer pensamento
e de me agarrar à sestra de qualquer projeto.
Sorrio cinicamente aos discursos dos bem-falantes
que ameaçam derrotar a pobreza
com a sucata da riqueza.
Aprendi e acostumei-me a ver a lógica transparente
do começo enigmático e do fim imprevisível
das coisas e das pessoas.
Reconheço-me impotente para vencer a morte,
por isso não entrego a ninguém minha vida solitária.
Compreendi, e é tarde, que, para viver a paz humana,
era imprescindível dar a quem de alguma coisa precisasse,
parte do que, dando, me fizesse falta
e não as migalhas do que me está sobrando.
Com a alma livre posso rir do que faz chorar a outros
e posso chorar do que a outros provoque o riso.
Tenho pena da água cristalina que já não corre,
das plantas que já não sombreiam,
das flores que já não são.
Não tenho medo da luz de todos os sóis,
de todas as pálidas luas,
de todas as irrequietas estrelas do firmamento azul.
Não tenho medo de ser atropelado pela felicidade súbita.
Curei-me também do dever de ser feliz.




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Eugênio Giovenardi
Outubro, 2003

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