segunda-feira, 8 de maio de 2023

EQUÍVOCOS DA URBANIZA;CÃO E USO DO SOLO

 

EQUÍVOCOS DA URBANIZAÇÃO

E DO USO DO SOLO

 

Eugênio Giovenardi, Sociólogo

 

Os primeiros assentamentos humanos de que se tem notícia se construíram, aproximadamente, há 4.000 anos (a.C.) nas proximidades do Rio Eufrates, na Mesopotâmia. As terras férteis eram cultivadas, de tempos em tempos, segundo as estações do ano, para alimentar povos seminômades, em fase de organização sedentária estável. A fixação dos assentamentos fez brotar a semente da organização da sociabilidade, da ajuda mútua, da cooperação e, acima de tudo, o poder dos anciãos e dos patriarcas.

 O uso da pedra e da madeira levou à construção de casas, muralhas, pontes, castelos, templos. A engenharia floresceu. A organização social gerou normas e códigos. O poder de comandar tomou as rédeas para conduzir os súditos. Como construir e administrar uma cidade capital, caput e centro de decisões? Como construir e administrar uma cidade para abrigar pessoas, vidas humanas? Como construir uma cidade sobre um espaço geográfico ecossistêmico ocupado por vidas não humanas e que é seu habitat natural?

Os engenheiros habilidosos foram convocados para gigantescas construções cuja memória ainda persiste. Torre de Babel, Acrópoles da Grécia, Muralha da China, Pagodes da Índia e da China, lugares sagrados dos Incas e dos Maias, castelos dos príncipes e reis da Europa, catedrais da Idade Média e da Renascença, Catedral de São Pedro, Vaticano/Roma, Palácios de Versailles/França e Peterhof em São Petersburgo/Rússia, Casa Branca/Washington, Casa Rosada/ Buenos Aires, Palácio do Catete/Rio, Palácio do Planalto/Brasília são alguns exemplos. A ousadia construtora dos engenheiros e arquitetos esteve, historicamente, harmonizada com os requerimentos do poder político da organização social.

A evolução das técnicas de produção agrícola, com a domesticação de cereais e animais, o aumento vertiginoso da população e distintas formas de organização social, religiosa e política, movidas por processos de cooperação e competição, fomentaram diferentes modelos sedentários e facilitaram o exercício do poder, com laivos autoritários ▬ feudos, burgos, cidades, metrópoles, estados/nações.

Engenheiros, arquitetos, urbanistas, geógrafos, geólogos, administradores públicos, planejadores sociais, nos últimos duzentos anos, incorreram em graves equívocos ao traçarem a construção de cidades sobre espaços geográficos pouco estudados. O crescimento demográfico incontrolado produziu o fenômeno do enchimento das cidades, onde se concentram múltiplos serviços públicos e privados que atendem as mais variadas necessidades humanas físicas e culturais requeridas ou desejadas.

O primeiro equívoco aparece na decisão de construir um assentamento urbano direcionado prioritariamente ao conforto e bem-estar de uma população humana, parcialmente indefinida, embora livre para habitá-lo. Uma arena urbana onde só podem jogar os atletas humanos. O conceito de biodiversidade e de ecossistema natural fica obnubilado pela arquitetura urbana dominante. Arquitetos e engenheiros que projetam cidades ou ocupam cargos de administração urbana, na prática, separam o ecossistema natural em duas partes - o ambiente físico (clima, ar, água, solo) e o ambiente biológico, constituído de vidas interdependentes e inter-relacionadas (biodiversidade). Nesse espaço geográfico ocupado por seres há milhares de anos por seres vivos protegidos pelo ecossistema agrega-se, de maneira impositiva, um novo e poderoso usuário com interesses determinados e conveniências próprias. O primeiro conflito, silencioso ou aberto, com essa separação, se produz entre os seres vivos humanos e os não humanos. O ecossistema reflete visivelmente a auto-organização da natureza, cujo princípio fundamental é a cooperação orgânica no processo de simbiose universal, definida por Pietr Kropotkin como mútua ajuda − mutualismo − no longo e lento processo evolutivo das espécies.

O planejador urbano precisa conhecer o funcionamento da auto-organização desse sistema antes de decidir como pode utilizar um espaço geográfico e garantir um alto grau de interdependência e inter-relação dos habitantes humanos e não humanos do mesmo ecossistema. É estrutural o intercâmbio social, biológico e ecossistêmico de todos os seres vivos que ocupam o mesmo espaço. As vidas se alimentam de vidas num caldeirão simbiótico.

O segundo equívoco se concretiza na modificação dos milenares cursos de água, para uso exclusivo dos habitantes urbanos em detrimento dos seres vivos não humanos vegetais e animais. Todos os agrupamentos humanos se assentaram às margens de rios, lagos ou mares. Nas urbanizações contemporâneas, a consequente impermeabilização do solo, com a eliminação parcial ou total da vegetação, impede a infiltração das águas pluviais, canaliza esgotos, lixo e sedimentos infectados que contaminarão córregos, rios, lagos e longínquos mares. A construção urbana de edifícios sobre uma área pode ser projetada de maneira a canalizar as águas pluviais para recarga dos aquíferos, fortalecimento dos mananciais, manutenção do fluxo das nascentes e os cursos de água. A canalização das águas usadas e esgotos tóxicos devem ser desviadas para recipientes adequados à despoluição e desinfecção antes de seu reuso e não diretamente aos córregos e lagos.

O terceiro equívoco, em consequência, se manifesta na ocupação do espaço, ao ignorar ou desconsiderar a biodiversidade original que o habita. Expulsa-a pela destruição de seu habitat ecossistêmico no qual vivia e se reproduzia. A expansão urbana, em razão do aumento da população, adota esse princípio da ocupação do solo, dito vazio, logo sacramentada por serviços públicos de água, energia, saúde, educação, transporte, segurança. A limpeza urbana, a canalização do esgoto líquido e o recolhimento do lixo se mantêm como ações retardatárias, fomentando a difusão de bactérias, insetos e vírus que infectam a saúde de vidas humanas e não humanas.

O quarto equívoco se realiza na arborização estéril, privando as árvores da reprodução natural e da sociabilidade vegetal de que gozavam no sistema de biodiversidade original, tornando-as apenas objeto de embelezamento artístico do ambiente, alinhadas segundo estética definida pelo olhar humano. As árvores têm identidade. Não são objetos inanimados. A função das árvores, em qualquer espaço, se cumpre na limpeza do ar, na captação e no armazenamento subterrâneo de carbono, no sombreamento para conforto de todos os seres vivos, na detenção e infiltração das águas, no período chuvoso, para recarga dos aquíferos.

O quinto equívoco é o cerceamento estrutural da mobilidade das pessoas. O conceito de separação aplicado à estrutura urbana torna desconfortável e esgotante o trânsito de cidadãos para beneficiar-se dos serviços da organização social.  A manifestação pública ou privada da sociabilidade humana expressa sentimentos afetivos e culturais. Busca socorrer-se de serviços de saúde, educação e lazer. Indica a vontade de participação ativa na produção de bens necessários ao conforto múltiplo de todas as pessoas, em diferentes idades e gênero. Essas múltiplas manifestações de sociabilidade são restringidas fortemente pela estrutura viária de locomoção. O sistema de transporte das grandes cidades é cruel, insano, insalubre e desumano.

O sexto equívoco, igualmente grave, é desunir drasticamente a vida da cidade do ecossistema natural que a recebeu.  A natureza é percebida como periferia ameaçadora a ser dominada. Os temidos desastres naturais atingem centenas de cidades no Brasil e alhures. As mudanças climáticas, que nos últimos duzentos anos, estão estreitamente associadas ao uso humano indiscriminado e intenso dos espaços urbanos e rurais, avisam que com a natureza não se negocia. A guerra contra ela é um desatino e está, para a espécie humana, de antemão perdida.

Um novo olhar sobre a realidade urbana e sobre a realidade dos ecossistemas do planeta, em perturbadoras mudanças climáticas, auspicia-se que levará a espécie sapiente a produzir modelos arquitetônicos urbanos, densamente humanos e harmoniosamente ecossistêmicos, imitando a genialidade da natureza. Exemplos de novos assentamentos urbanos, estreitamente vinculados ao ecossistema, com base na mobilidade humana inteligente para participação dos serviços sociais e culturais, florescem na Itália e Estados Unidos. Com o lema ─ Voltando aos povoados ─ (À PROCURA DA BRASÍLIA PERDIDA, Giovenardi E. Kelps, 2022), enfatiza-se a glocalização para fortalecer as iniciativas locais, oferecendo inteligentes soluções de dificuldades estruturais da comunidade relacionadas com o conjunto de situações globais.

 

"Reconhecer a ideia do Antropoceno é reconhecer o impacto irreversível das atividades do homem, que afetam não somente os sistemas de água e recursos naturais do planeta, mas também o que essas ações significam no futuro das espécies". (Prof. Janos Bogardi, vice-reitor da Universidade da ONU, 2022).

“Pietr Kropotkin (1842-1921- Mutualismo) es evidentemente un precursor de la actual antropología política de Pierre Clastres. (1934-1977 - A Sociedade contra o Estado). Concede gran importancia a la comuna aldeana, institución universal y célula de toda sociedad futura, que existió en todos los pueblos y sobrevive aun hoy en algunos, afirma.o biólogo Ashley Montagu (1905 -1999). (In Simbiosis, Lic. Eng. Agron. Jaime Llosa Larraburu, Lima, Peru, 2023).

4.4.2023

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