EQUÍVOCOS DA URBANIZAÇÃO
E DO USO DO SOLO
Eugênio Giovenardi,
Sociólogo
Os primeiros assentamentos humanos de que se tem notícia se construíram,
aproximadamente, há 4.000 anos (a.C.) nas
proximidades do Rio Eufrates, na Mesopotâmia. As terras férteis eram
cultivadas, de tempos em tempos, segundo as estações do ano, para alimentar
povos seminômades, em fase de organização sedentária estável. A fixação dos
assentamentos fez brotar a semente da organização da sociabilidade, da ajuda
mútua, da cooperação e, acima de tudo, o poder dos anciãos e dos patriarcas.
O uso da pedra e da madeira levou
à construção de casas, muralhas, pontes, castelos, templos. A engenharia
floresceu. A organização social gerou normas e códigos. O poder de comandar
tomou as rédeas para conduzir os súditos. Como construir e administrar uma cidade
capital, caput e centro de decisões? Como
construir e administrar uma cidade para abrigar pessoas, vidas humanas? Como
construir uma cidade sobre um espaço geográfico ecossistêmico ocupado por vidas
não humanas e que é seu habitat natural?
Os engenheiros habilidosos foram convocados para gigantescas construções
cuja memória ainda persiste. Torre de Babel, Acrópoles da Grécia, Muralha da
China, Pagodes da Índia e da China, lugares sagrados dos Incas e dos Maias,
castelos dos príncipes e reis da Europa, catedrais da Idade Média e da
Renascença, Catedral de São Pedro, Vaticano/Roma, Palácios de Versailles/França
e Peterhof em São Petersburgo/Rússia, Casa Branca/Washington, Casa Rosada/ Buenos
Aires, Palácio do Catete/Rio, Palácio do Planalto/Brasília são alguns exemplos.
A ousadia construtora dos engenheiros e arquitetos esteve, historicamente,
harmonizada com os requerimentos do poder político da organização social.
A evolução das técnicas de
produção agrícola, com a domesticação de cereais e animais, o aumento
vertiginoso da população e distintas formas de organização social, religiosa e
política, movidas por processos de cooperação e competição, fomentaram
diferentes modelos sedentários e facilitaram o exercício do poder, com laivos
autoritários ▬ feudos, burgos, cidades, metrópoles, estados/nações.
Engenheiros, arquitetos,
urbanistas, geógrafos, geólogos, administradores públicos, planejadores
sociais, nos últimos duzentos anos, incorreram em graves equívocos ao traçarem
a construção de cidades sobre espaços geográficos pouco estudados. O
crescimento demográfico incontrolado produziu o fenômeno do enchimento das
cidades, onde se concentram múltiplos serviços públicos e privados que atendem
as mais variadas necessidades humanas físicas e culturais requeridas ou
desejadas.
O primeiro equívoco aparece
na decisão de construir um assentamento urbano direcionado prioritariamente ao
conforto e bem-estar de uma população humana, parcialmente indefinida, embora livre
para habitá-lo. Uma arena urbana onde só podem jogar os atletas humanos. O
conceito de biodiversidade e de ecossistema natural fica obnubilado pela
arquitetura urbana dominante. Arquitetos e engenheiros que projetam cidades ou ocupam
cargos de administração urbana, na prática, separam o ecossistema natural em
duas partes - o ambiente físico (clima, ar, água, solo) e o ambiente biológico,
constituído de vidas interdependentes e inter-relacionadas (biodiversidade).
Nesse espaço geográfico ocupado por seres há milhares de anos por seres vivos
protegidos pelo ecossistema agrega-se, de maneira impositiva, um novo e
poderoso usuário com interesses determinados e conveniências próprias. O
primeiro conflito, silencioso ou aberto, com essa separação, se produz entre os
seres vivos humanos e os não humanos. O ecossistema reflete visivelmente a
auto-organização da natureza, cujo princípio fundamental é a cooperação
orgânica no processo de simbiose universal, definida por Pietr Kropotkin como mútua ajuda − mutualismo − no longo e
lento processo evolutivo das espécies.
O planejador urbano precisa
conhecer o funcionamento da auto-organização desse sistema antes de decidir como
pode utilizar um espaço geográfico e garantir um alto grau de interdependência
e inter-relação dos habitantes humanos e não humanos do mesmo ecossistema. É
estrutural o intercâmbio social, biológico e ecossistêmico de todos os seres
vivos que ocupam o mesmo espaço. As vidas se alimentam de vidas num caldeirão
simbiótico.
O segundo equívoco se concretiza
na modificação dos milenares cursos de água, para uso exclusivo dos habitantes
urbanos em detrimento dos seres vivos não humanos vegetais e animais. Todos os
agrupamentos humanos se assentaram às margens de rios, lagos ou mares. Nas
urbanizações contemporâneas, a consequente impermeabilização do solo, com a
eliminação parcial ou total da vegetação, impede a infiltração das águas
pluviais, canaliza esgotos, lixo e sedimentos infectados que contaminarão
córregos, rios, lagos e longínquos mares. A construção urbana de edifícios
sobre uma área pode ser projetada de maneira a canalizar as águas pluviais para
recarga dos aquíferos, fortalecimento dos mananciais, manutenção do fluxo das
nascentes e os cursos de água. A canalização das águas usadas e esgotos tóxicos
devem ser desviadas para recipientes adequados à despoluição e desinfecção
antes de seu reuso e não diretamente aos córregos e lagos.
O terceiro equívoco, em
consequência, se manifesta na ocupação do espaço, ao ignorar ou desconsiderar a
biodiversidade original que o habita. Expulsa-a pela destruição de seu habitat
ecossistêmico no qual vivia e se reproduzia. A expansão urbana, em razão do
aumento da população, adota esse princípio da ocupação do solo, dito vazio,
logo sacramentada por serviços públicos de água, energia, saúde, educação,
transporte, segurança. A limpeza urbana, a canalização do esgoto líquido e o
recolhimento do lixo se mantêm como ações retardatárias, fomentando a difusão
de bactérias, insetos e vírus que infectam a saúde de vidas humanas e não
humanas.
O quarto equívoco se realiza
na arborização estéril, privando as árvores da reprodução natural e da
sociabilidade vegetal de que gozavam no sistema de biodiversidade original,
tornando-as apenas objeto de embelezamento artístico do ambiente, alinhadas
segundo estética definida pelo olhar humano. As árvores têm identidade. Não são
objetos inanimados. A função das árvores, em qualquer espaço, se cumpre na
limpeza do ar, na captação e no armazenamento subterrâneo de carbono, no
sombreamento para conforto de todos os seres vivos, na detenção e infiltração
das águas, no período chuvoso, para recarga dos aquíferos.
O quinto equívoco é o
cerceamento estrutural da mobilidade das pessoas. O conceito de separação
aplicado à estrutura urbana torna desconfortável e esgotante o trânsito de
cidadãos para beneficiar-se dos serviços da organização social. A manifestação pública ou privada da
sociabilidade humana expressa sentimentos afetivos e culturais. Busca socorrer-se
de serviços de saúde, educação e lazer. Indica a vontade de participação ativa
na produção de bens necessários ao conforto múltiplo de todas as pessoas, em
diferentes idades e gênero. Essas múltiplas manifestações de sociabilidade são
restringidas fortemente pela estrutura viária de locomoção. O sistema de
transporte das grandes cidades é cruel, insano, insalubre e desumano.
O sexto equívoco, igualmente
grave, é desunir drasticamente a vida da cidade do ecossistema natural que a
recebeu. A natureza é percebida como
periferia ameaçadora a ser dominada. Os temidos desastres naturais atingem
centenas de cidades no Brasil e alhures. As mudanças climáticas, que nos
últimos duzentos anos, estão estreitamente associadas ao uso humano
indiscriminado e intenso dos espaços urbanos e rurais, avisam que com a
natureza não se negocia. A guerra contra ela é um desatino e está, para a
espécie humana, de antemão perdida.
Um novo olhar sobre a
realidade urbana e sobre a realidade dos ecossistemas do planeta, em
perturbadoras mudanças climáticas, auspicia-se que levará a espécie sapiente a
produzir modelos arquitetônicos urbanos, densamente humanos e harmoniosamente
ecossistêmicos, imitando a genialidade da natureza. Exemplos de novos
assentamentos urbanos, estreitamente vinculados ao ecossistema, com base na
mobilidade humana inteligente para participação dos serviços sociais e
culturais, florescem na Itália e Estados Unidos. Com o lema ─ Voltando aos povoados ─ (À PROCURA DA
BRASÍLIA PERDIDA, Giovenardi E. Kelps, 2022), enfatiza-se a glocalização para
fortalecer as iniciativas locais, oferecendo inteligentes soluções de
dificuldades estruturais da comunidade relacionadas com o conjunto de situações
globais.
"Reconhecer a ideia do
Antropoceno é reconhecer o impacto irreversível das atividades do homem, que
afetam não somente os sistemas de água e recursos naturais do planeta, mas
também o que essas ações significam no futuro das espécies". (Prof. Janos
Bogardi, vice-reitor da Universidade da ONU, 2022).
“Pietr Kropotkin (1842-1921-
Mutualismo) es evidentemente un precursor de la actual antropología política de
Pierre Clastres. (1934-1977 - A Sociedade contra o
Estado).
Concede gran importancia a la comuna aldeana, institución universal y célula de
toda sociedad futura, que existió en todos los pueblos y sobrevive aun hoy en
algunos, afirma.o biólogo Ashley Montagu (1905 -1999). (In
Simbiosis,
Lic. Eng. Agron. Jaime Llosa Larraburu, Lima, Peru, 2023).
4.4.2023
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