UM DESERTO É RESULTADO DE AÇÕES
ORQUESTRADAS E INTERDEPENDENTES
Eugênio
Giovenardi,
Ecossociólogo,
escritor
A alteração drástica e prolongada de um espaço físico, de um bioma e
seus ecossistemas, com intervenção múltipla da espécie humana, descontrola o
funcionamento regular das leis físicas. Redireciona o caminho dos ventos,
modifica o regime de chuvas. Elevam-se ou reduzem-se as temperaturas. Tornados
e tempestades inclementes assolam florestas e cidades nos 5 Continentes.
É acertado dizer que a insegurança climática afeta o comportamento
natural de toda a biodiversidade. Os seres humanos e não humanos se defrontam
com limitações biológicas, genéticas e orgânicas. Todas as formas de vida,
atacadas por bactérias e vírus, tentam adaptar-se às debilitadas condições da
natureza para reconquistar a continuidade da vida e a regeneração da
biodiversidade, que é imprescindível à reprodução das espécies.
Os eventos internacionais promovidos pela Conferência das Nações Unidas
sobre as Mudanças Climáticas (Conference of de parties – COP) alertam sobre os
riscos letais do aquecimento global para a biodiversidade e, em especial, para
a espécie humana. “Caminhamos aceleradamente para o suicídio coletivo”, afirmou
Antonio Guterres, Secretário Geral da ONU. Anualmente, na Conferência do clima,
em razão do aquecimento do planeta, mencionam-se, reiteradamente, as
consequências do efeito estufa. São elas:
- Derretimento de grandes massas
de gelo das regiões polares, resultando em aumento do nível do mar, atingindo
cidades e ilhas, forçando a migração de seus habitantes.
- Fenômenos físicos extremos como
inundações, tempestades e furacões.
- Redução da biodiversidade com extinção de espécies vegetais e
animais.
- Desertificação de extensas áreas comprometendo o funcionamento
natural de biomas e ecossistemas.
- Episódios mais e mais
frequentes de secas em muitas regiões do planeta.
- Áreas de produção de alimentos, severamente afetadas, resultam no
desabastecimento de bens a mais da metade da população mundial.
Múltiplas peças interdependentes de um sistema, movidas no tabuleiro de
um espaço geográfico pela energia da espécie humana, ao longo de séculos, podem
produzir um deserto inabitável, como por exemplo, do Saara. Entre as principais
ações antropogênicas, executadas há alguns milhares de anos e agravadas nos
últimos 200 anos, destacam-se: o desmatamento seletivo para uso da madeira em
construção de casas e feitura de móveis; o desflorestamento arrasador para
produção de alimentos, assentamentos humanos e suas adaptações para não
humanos; a destruição de mananciais e
consequente eliminação de córregos; a drenagem de pântanos, utilização extrema
de água de lagos, alteração do curso de rios; o represamento de águas para
abastecimento humano e geração de energia elétrica; as queimadas indiscriminadas
de florestas; as terraplanagens para rodovias e cidades; a impermeabilização de
grandes áreas urbanas e abertura de vias
superficiais e elevadas, que favorecem o escoamento de águas pluviais, causam
assoreamento de rios e impedem a infiltração e a percolação hídrica,
necessárias à recarga dos aquíferos subterrâneos.
A diversidade do uso do solo e dos elementos físicos, requeridos para a
execução de atividades referentes à sobrevivência e reprodução, em razão do
crescimento numérico da população, impulsiona a espécie humana a ocupar todos
os espaços úteis do planeta. O controle dos meios de produção está distante de
alcançar o grau de solidariedade que propicie bem-estar a toda a população de 8
bilhões de humanos. As decisões administrativas e econômicas estão concentradas
em poucos centros decisórios de acumulação de bens, em âmbito nacional e
internacional, estruturalmente inadequados para oferecer serviços de
sobrevivência digna a grandes populações.
A terra e o solo, as águas superficiais e subterrâneas, o ar que
humanos e não humanos respiram, estão contaminados e disseminam doenças nem
sempre possíveis e factíveis de serem tratadas em hospitais disponíveis. A
queima de combustíveis poluentes e a devastação de três quartos da área emersa
do planeta somam-se às mudanças físicas naturais do clima planetário.
A desertificação sistêmica do planeta se produz com fatos
inter-relacionados, provocados por fenômenos físicos incontroláveis e/ou por
atividades concebidas, desejadas e executadas pela espécie humana. Nem todos os
benefícios das inovações humanas são socializados com o mesmo ímpeto dos
malefícios. A desertificação se torna incontrolável quando se associam ações
humanas intensas, indiscriminadas e fenômenos físicos provocados ou naturais.
As consequências mais gritantes se manifestam em três cenários: aumento
do número de humanos e não humanos com deficiência alimentar e privados de
serviços sanitários; difícil acesso universal à água potável; intenso trafego
de populações migrantes em busca de ambiente social de sobrevivência. Estes
cenários não são apenas uma equação de inequidade das decisões políticas, mas também,
se referem aos obstáculos reais de administrar a sobrevivência pacífica de
bilhões de humanos e outros bilhões de não humanos. A interação e a
interdependência de todos os seres vivos são características estruturais e funcionais que garantem a
preservação da biodiversidade num planeta limitado.
A população
mundial, conforme informações da “World Population Prospects 2022” (ONU), é de 8 bilhões de pessoas (e outros tantos bilhões de
bovinos, porcinos, ovinos, caprinos, equinos, caninos, felinos, galináceos
etc.) para habitar um planeta devastado. Segundo o citado relatório da ONU, um
décimo da população mundial (800 milhões), em áreas rurais e urbanas, sobrevive
em estado de fome crônica ou morre prematuramente e a metade dos 8 bilhões de
pessoas é mal alimentada em razão da dificuldade de acesso aos benefícios que
privilegiam a outra metade. Conclui-se que os responsáveis diretos pela
desertificação do planeta são os 4 bilhões que desfrutam diariamente das
riquezas acumuladas.
Não é, portanto, uma simples equação de inequidade das políticas
intra-humanas de produção e repartição de bens. É um sistema de ocupação do
espaço geográfico do planeta comandado pela espécie humana, segundo seus
interesses, necessidades, intenções e exercício de poder que, a longo prazo,
conflita e colide com as leis físicas do universo. Consciente ou
inconscientemente, a espécie humana cria e determina as condições de sua
extinção. Sua capacidade técnica e tecnológica, por mais avançada que possa parecer,
é freada pelos limites de opções disponíveis nas prateleiras do planeta.
A desertificação de um espaço geográfico pode acontecer em poucos anos.
Mas a regeneração biológica dos ecossistemas, que propícia à recomposição de
parte da biodiversidade, pode demandar dezenas ou centenas de anos para repor
as condições favoráveis à presença de vidas interativas e interdependentes.
Diante de um deserto concretizado, os seres vivos humanos e não humanos se
defrontam com opções drásticas ─ migrar para outro espaço geográfico ou reduzir
o número de ocupantes de áreas habitáveis.
É razoável e necessário, pois, diante das circunstâncias climáticas que
afetam a biodiversidade no planeta, observar o princípio da precaução para orientar
criteriosamente a reprodução da espécie humana. A alegria de viver e a
confraternização social das pessoas e dos povos dependem da coparticipação no
usufruto dos bens limitados do planeta. O princípio da precaução indica a
possibilidade imediata de propiciar ao novo ser as condições físicas e humanas de
dignidade requeridas pelo milagre da vida.
Para o Cerrado e, especificamente, para o território do Distrito
Federal, as consequências diretas já estão percebidas, analisadas e sentidas ─
aprofundamento das águas superficiais e redução do afloramento de olhos d’água,
morte de nascentes e córregos de ligação com rios receptores. Na ocupação
crescente de áreas rurais e na periferia da Cidade-Parque proliferaram poços
artesianos para usos múltiplos da água aos proprietários. A Agência Reguladora de Águas, Energia e Saneamento Básico (Adasa) detectou 1.015
poços artesianos irregulares na Bacia do Rio Descoberto. Com o tempo, secam-se os lagos interiores e restam
caixas de água vazias. A irregularidade das chuvas se junta às demais condições
de insegurança climática.
O Cerrado, o território do Distrito Federal e a população de 4 milhões
de cidadãos, há algumas décadas, dependem das águas da chuva para reabastecer
temporariamente os reservatórios semivazios. As condições, já constatadas e
anunciadas de desertificação do Cerrado e de redução do fluxo dos mananciais, são
alimentadas simultaneamente por atitudes e comportamentos lenientes da
administração dos ecossistemas e de grande parte da população.
As propostas sensatas para redirecionar o sistema de ocupação do solo e
administração inteligente das riquezas naturais do bioma Cerrado, um dos mais
diversificados do planeta, ainda não comoveram nem comprometeram os centros de
decisão a adotar o princípio da precaução no uso prudente dos bens naturais e
na construção de um convívio satisfatório de interação e interdependência de
todos os seres vivos da natureza.
15.11.2022
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