terça-feira, 22 de novembro de 2022

UM DESERTO É RESULTADO DE AÇÕES ORQUESTRADAS E INTERDEPENDENTES

 UM DESERTO É RESULTADO DE AÇÕES

ORQUESTRADAS E INTERDEPENDENTES

 

Eugênio Giovenardi,

Ecossociólogo, escritor

 

A alteração drástica e prolongada de um espaço físico, de um bioma e seus ecossistemas, com intervenção múltipla da espécie humana, descontrola o funcionamento regular das leis físicas. Redireciona o caminho dos ventos, modifica o regime de chuvas. Elevam-se ou reduzem-se as temperaturas. Tornados e tempestades inclementes assolam florestas e cidades nos 5 Continentes.

É acertado dizer que a insegurança climática afeta o comportamento natural de toda a biodiversidade. Os seres humanos e não humanos se defrontam com limitações biológicas, genéticas e orgânicas. Todas as formas de vida, atacadas por bactérias e vírus, tentam adaptar-se às debilitadas condições da natureza para reconquistar a continuidade da vida e a regeneração da biodiversidade, que é imprescindível à reprodução das espécies.

Os eventos internacionais promovidos pela Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (Conference of de parties – COP) alertam sobre os riscos letais do aquecimento global para a biodiversidade e, em especial, para a espécie humana. “Caminhamos aceleradamente para o suicídio coletivo”, afirmou Antonio Guterres, Secretário Geral da ONU. Anualmente, na Conferência do clima, em razão do aquecimento do planeta, mencionam-se, reiteradamente, as consequências do efeito estufa. São elas:

- Derretimento de grandes massas de gelo das regiões polares, resultando em aumento do nível do mar, atingindo cidades e ilhas, forçando a migração de seus habitantes.

- Fenômenos físicos extremos como inundações, tempestades e furacões.

- Redução da biodiversidade com extinção de espécies vegetais e animais.

- Desertificação de extensas áreas comprometendo o funcionamento natural de biomas e ecossistemas.

-  Episódios mais e mais frequentes de secas em muitas regiões do planeta.

- Áreas de produção de alimentos, severamente afetadas, resultam no desabastecimento de bens a mais da metade da população mundial.

 

Múltiplas peças interdependentes de um sistema, movidas no tabuleiro de um espaço geográfico pela energia da espécie humana, ao longo de séculos, podem produzir um deserto inabitável, como por exemplo, do Saara. Entre as principais ações antropogênicas, executadas há alguns milhares de anos e agravadas nos últimos 200 anos, destacam-se: o desmatamento seletivo para uso da madeira em construção de casas e feitura de móveis; o desflorestamento arrasador para produção de alimentos, assentamentos humanos e suas adaptações para não humanos;  a destruição de mananciais e consequente eliminação de córregos; a drenagem de pântanos, utilização extrema de água de lagos, alteração do curso de rios; o represamento de águas para abastecimento humano e geração de energia elétrica; as queimadas indiscriminadas de florestas; as terraplanagens para rodovias e cidades; a impermeabilização de grandes áreas urbanas e  abertura de vias superficiais e elevadas, que favorecem o escoamento de águas pluviais, causam assoreamento de rios e impedem a infiltração e a percolação hídrica, necessárias à recarga dos aquíferos subterrâneos.

A diversidade do uso do solo e dos elementos físicos, requeridos para a execução de atividades referentes à sobrevivência e reprodução, em razão do crescimento numérico da população, impulsiona a espécie humana a ocupar todos os espaços úteis do planeta. O controle dos meios de produção está distante de alcançar o grau de solidariedade que propicie bem-estar a toda a população de 8 bilhões de humanos. As decisões administrativas e econômicas estão concentradas em poucos centros decisórios de acumulação de bens, em âmbito nacional e internacional, estruturalmente inadequados para oferecer serviços de sobrevivência digna a grandes populações. 

A terra e o solo, as águas superficiais e subterrâneas, o ar que humanos e não humanos respiram, estão contaminados e disseminam doenças nem sempre possíveis e factíveis de serem tratadas em hospitais disponíveis. A queima de combustíveis poluentes e a devastação de três quartos da área emersa do planeta somam-se às mudanças físicas naturais do clima planetário.

A desertificação sistêmica do planeta se produz com fatos inter-relacionados, provocados por fenômenos físicos incontroláveis e/ou por atividades concebidas, desejadas e executadas pela espécie humana. Nem todos os benefícios das inovações humanas são socializados com o mesmo ímpeto dos malefícios. A desertificação se torna incontrolável quando se associam ações humanas intensas, indiscriminadas e fenômenos físicos provocados ou naturais.

As consequências mais gritantes se manifestam em três cenários: aumento do número de humanos e não humanos com deficiência alimentar e privados de serviços sanitários; difícil acesso universal à água potável; intenso trafego de populações migrantes em busca de ambiente social de sobrevivência. Estes cenários não são apenas uma equação de inequidade das decisões políticas, mas também, se referem aos obstáculos reais de administrar a sobrevivência pacífica de bilhões de humanos e outros bilhões de não humanos. A interação e a interdependência de todos os seres vivos são características   estruturais e funcionais que garantem a preservação da biodiversidade num planeta limitado.

A população mundial, conforme informações da “World Population Prospects 2022” (ONU), é de 8 bilhões de pessoas (e outros tantos bilhões de bovinos, porcinos, ovinos, caprinos, equinos, caninos, felinos, galináceos etc.) para habitar um planeta devastado. Segundo o citado relatório da ONU, um décimo da população mundial (800 milhões), em áreas rurais e urbanas, sobrevive em estado de fome crônica ou morre prematuramente e a metade dos 8 bilhões de pessoas é mal alimentada em razão da dificuldade de acesso aos benefícios que privilegiam a outra metade. Conclui-se que os responsáveis diretos pela desertificação do planeta são os 4 bilhões que desfrutam diariamente das riquezas acumuladas.

Não é, portanto, uma simples equação de inequidade das políticas intra-humanas de produção e repartição de bens. É um sistema de ocupação do espaço geográfico do planeta comandado pela espécie humana, segundo seus interesses, necessidades, intenções e exercício de poder que, a longo prazo, conflita e colide com as leis físicas do universo. Consciente ou inconscientemente, a espécie humana cria e determina as condições de sua extinção. Sua capacidade técnica e tecnológica, por mais avançada que possa parecer, é freada pelos limites de opções disponíveis nas prateleiras do planeta.

A desertificação de um espaço geográfico pode acontecer em poucos anos. Mas a regeneração biológica dos ecossistemas, que propícia à recomposição de parte da biodiversidade, pode demandar dezenas ou centenas de anos para repor as condições favoráveis à presença de vidas interativas e interdependentes. Diante de um deserto concretizado, os seres vivos humanos e não humanos se defrontam com opções drásticas ─ migrar para outro espaço geográfico ou reduzir o número de ocupantes de áreas habitáveis.

É razoável e necessário, pois, diante das circunstâncias climáticas que afetam a biodiversidade no planeta, observar o princípio da precaução para orientar criteriosamente a reprodução da espécie humana. A alegria de viver e a confraternização social das pessoas e dos povos dependem da coparticipação no usufruto dos bens limitados do planeta. O princípio da precaução indica a possibilidade imediata de propiciar ao novo ser as condições físicas e humanas de dignidade requeridas pelo milagre da vida.

 

Para o Cerrado e, especificamente, para o território do Distrito Federal, as consequências diretas já estão percebidas, analisadas e sentidas ─ aprofundamento das águas superficiais e redução do afloramento de olhos d’água, morte de nascentes e córregos de ligação com rios receptores. Na ocupação crescente de áreas rurais e na periferia da Cidade-Parque proliferaram poços artesianos para usos múltiplos da água aos proprietários. A Agência Reguladora de Águas, Energia e Saneamento Básico (Adasa) detectou 1.015 poços artesianos irregulares na Bacia do Rio Descoberto. Com o tempo, secam-se os lagos interiores e restam caixas de água vazias. A irregularidade das chuvas se junta às demais condições de insegurança climática.

O Cerrado, o território do Distrito Federal e a população de 4 milhões de cidadãos, há algumas décadas, dependem das águas da chuva para reabastecer temporariamente os reservatórios semivazios. As condições, já constatadas e anunciadas de desertificação do Cerrado e de redução do fluxo dos mananciais, são alimentadas simultaneamente por atitudes e comportamentos lenientes da administração dos ecossistemas e de grande parte da população.

As propostas sensatas para redirecionar o sistema de ocupação do solo e administração inteligente das riquezas naturais do bioma Cerrado, um dos mais diversificados do planeta, ainda não comoveram nem comprometeram os centros de decisão a adotar o princípio da precaução no uso prudente dos bens naturais e na construção de um convívio satisfatório de interação e interdependência de todos os seres vivos da natureza.

 

 

15.11.2022

 

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