Nota: Comentários do escritor e crítico literário EDMILSON CAMINHA sobre AS PEDRAS DE ROMA, traduzido para o inglês.
O PAPA QUE NÃO GOSTAVA DE DEUS
Edmílson Caminha
Eugênio
Giovenardi é dos poucos brasileiros capazes de escrever um livro com a riqueza
humana e a magnitude literária que põem As
pedras de Roma (Porto Alegre : MaisQNada, 2009) entre os mais expressivos romances
da nossa literatura, nos últimos tempos. Teólogo, filósofo e sociólogo, o autor
detém profundo conhecimento da Igreja Católica, a que apela para contar a
história impressionante de Giovanni de Medici, feito cardeal com 13 anos de
idade, e que governou o Vaticano, como Papa Leão X, de 1513 a 1521, quando se
suicida envenenado, aos 45 anos.
Tempo
da maior importância na história da humanidade, nele se assistiu ao esplendor
da Renascença, à Reforma de Lutero, ao surgimento das grandes nações da Europa,
à consolidação de monarquias, à decadência do feudalismo, à perda do poder
secular da Igreja, à descoberta de caminhos para o novo mundo ocidental.
Matérias valiosas, que, na pena de historiadores acadêmicos, renderiam páginas
burocráticas e enfadonhas. Ocorre que Giovenardi, além de grande pesquisador, é
escritor admirável, que prima pela elegância do estilo, fluidez da narração e
apuro da linguagem. Ideia relativamente comum a romancistas, o texto é de
“segunda mão”, pois veio a quem o publica, no caso, de um ex-diretor da
Biblioteca Vaticana. São os “Rapporti confidenziali”, lembranças, pensamentos e
relatos de Leão X talvez anotados, e guardados, por um anão que lhe prestava
serviços. Filho de Lourenço, o Magnífico, de quem viera o gosto das artes, das
letras, das ciências, o herdeiro Giovanni cedo se descobre mais voltado para as
pompas do mundo que para o despojamento do espírito:
Quando
concorro aos ritos, o faço como ator de teatro, com vestuário adequado,
movimentando-me como um personagem no palco iluminado. (...) Cardeal
adolescente, na pompa do cerimonial, vestido de seda escarlate, portava-me com
a dignidade postiça exigida pelo ato litúrgico. Encenava uma peça que reunia o
cômico, o trágico e o dramático num estrado suntuosamente decorado, sob os
olhares ocultos das divindades e, ao mesmo tempo, dos espectadores encantados.
Ainda me seduz a arte do religioso, a poesia do misticismo, embora dele não
participe com o entusiasmo de um místico. Sou um homem da terra, não do Olimpo.
Prefere
os prazeres intelectuais ao exame da teologia:
A
especulação teológica não me entusiasma. Aborrece-me gastar o tempo em ouvir
discussões sobre teses que escarafuncham as entranhas da divindade. Deixo aos
dominicanos e agostinianos a tarefa de provar a verdade da ressurreição de
Cristo e sua reencarnação.
Não
se ilude quanto aos possíveis méritos com que lhe é dado exercer o poder papal:
Das
virtudes que se exigem de um papa, nenhuma delas é mais eficaz do que a sorte.
A esperteza política está em manter os efeitos da sorte a seu lado. A virtude
do político é ser contraditório. As circunstâncias nos contradizem e nos traem.
Aposto nos erros e fracassos alheios mais do que em minhas virtudes.
E
chega a questionar, com um amigo poeta, o conhecimento que se possa ter do
Criador: “Sinceramente, Bembo, quem conhece Deus? Quem sabe o que ele pensa?
Deus não pensa. Pensar é humano. Pensar é desvendar o desconhecido. (...) Se
Deus fala por mim não tenho certeza, é suficiente que os outros a tenham.”
Sensível
aos prazeres da carne, com a princesa Porzia Dupuy tem um filho, que fará
cardeal, e entrega-se na cama a experiências homoeróticas com o cardeal
Petrucci:
Fâmulos
e serviçais do palácio divertiam-se com as cenas de meus ciúmes, nutridos pelas
leviandades de Petrucci. (...) Na festa da colheita das uvas, foi trazido ao
castelo desfalecido e bêbado. Recusei-lhe o quarto, desprezei seu arrependimento,
assinei um lacônico despacho e o mandei de volta a Roma.
A
fazer contraponto com a grandeza de Sumo Pontífice, a fragilidade humana
representada pela fístula anal que o atormenta ao longo da vida:
O
cardeal Petrucci me untava com unguentos de zinco e essências de sândalo.
Tornei-me um peso e um estorvo para seus dias de repouso e suas vaidades. Por
isso, aceitei de bom grado que os curativos me fossem feitos por jovens
enfermeiros do nosocômio Santa Madalena.
Tão
bem escrito é o romance que chegamos a crer na veracidade do diário, como se
fora mesmo um documento histórico, por entre personagens como Erasmo de
Roterdam, Rafael e Leonardo da Vinci. As reflexões são de tal maneira lúcidas ‒
e surpreendentemente atuais ‒ que lembram o Maquiavel d’O Príncipe, embora reduzido por Leão X a “funcionário ambíguo,
humilde e calculista”:
O
poder é o laço que une a cabeça do Vaticano ao corpo da Ecclesia. (...) Se um
dia for subtraído ao Papa o poder de coroar reis e imperadores, sua autoridade
será meramente decorativa. Sua voz será ouvida com respeito, repetida por reis,
retransmitida por bispos e cardeais, sem ser obedecida.
A
política é a arte de enganar com prestidigitações do possível a obtenção do
incerto.
A
cristandade precisa mais de poetas do que de padres.
O
espiritual e o sensual convivem. Separá-los é querer desunir o corpo da alma.
Condenar a vida à morte.
Se
todos os cristãos fossem honestos e castos a Igreja de Roma seria pobre como os
camponeses.
Ao
governar, percebe-se que não necessariamente se tem o poder.
Nada
que se diga diante de um copo de vinho, e, principalmente, depois dele, tem
caráter sigiloso.
Não
há que temer pelo futuro. A história é feita de fatos.
É
preferível ter inimigos que acusam a amigos que silenciam.
Equívoco
imperdoável é estar no lugar errado com pessoas erradas.
Os
teólogos costumam envolver em complexas e belas frases o que não entendem.
Não
se chega a segredos de Estado sem uma alcova e lençóis limpos.
Que
pode haver de herético em alguma interpretação da Bíblia, ela mesma um
amontoado de fatos contraditórios?
Os
capítulos, elegantemente titulados em latim, são encimados por imagens
reduzidas de quadros famosos, que em outra edição merecem, para que melhor
apreciem os leitores, reproduções coloridas, em página inteira. É o cuidado
devido ao romance com a excelência deste As
pedras de Roma, cuja grandeza nos lembra o primoroso ensaio Amor a Roma, de Afonso Arinos de Melo
Franco. Dois livros notáveis, belas homenagens à urbe amada por Goethe como a
capital do mundo. Sobre as milenares pedras de Roma, Eugênio Giovenardi faz o
Papa Leão X desfilar silencioso à frente do seu purpúreo préstito de cardeais,
como símbolo de uma ilusória santidade e da triste pequenez a que todos somos
reduzidos pela humana condição.
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