PUBLIQUEI, NESTE BLOG, AS REFLEXÕES ABAIXO.
UPP OU UPP – EIS A QUESTÃO
Ao ouvir o primeiro anúncio do governo do Rio de Janeiro, em 2008, sobre a instalação de Unidades de Polícia Pacificadora em comunidades dos morros cariocas, também ditas favelas, opinei, em círculos restritos, contra esse equívoco administrativo.
A essência da atividade policial é reprimir, não pacificar. Toda a concepção policial e sua educação profissional são para usar a força e as armas com ou sem razão. Apertar o gatilho é mais fácil do que dialogar. Segundo o próprio governo, os integrantes de UPP não receberam o treinamento necessário e específico para tratar com pessoas e cidadãos desarmados. Para os policiais todos os cidadãos são suspeitos até prova em contrário.
PRÉ-UPP
Milícias militares ou paramilitares que atuavam nas favelas eram policiais, bombeiros, vigilantes, agentes penitenciários e militares fora de serviço ou na ativa. Agiam em comunidades urbanas de baixa renda, conjuntos habitacionais e favelas sob a alegação de combater o narcotráfico. Mantinham-se com recursos financeiros provenientes da venda de proteção da população carente, extorsão de comerciantes e pessoas denominadas chefes de zonas de comércio de drogas.
As milícias policiais controlavam mais de 400 das 1006 favelas da cidade do Rio de Janeiro. Contavam com respaldo de políticos e lideranças comunitárias locais, muitos deles ligados à distribuição de entorpecentes.
Mancomunados com facções distribuidoras de drogas, essas milícias paralelamente organizadas e de pleno conhecimento dos comandos da polícia do Estado, de políticos em exercício de mandatos, altos funcionários do governo, advogados e meritíssimos juízes, além de pedágios para garantir a segurança das comunidades, cobravam a execução dos “contratos” averbados segundo a lei da droga: o não cumprimento do “acertado” leva à pena de morte.
Parte dessa organização policial paralela, que engloba várias categorias de pessoas públicas, permanece ativa. Como se noticiou, alguns policiais pertenciam aos dois grupos enfrentados e integraram a polícia pacificadora. Buscaram legitimar sua ação criminosa, cujos acontecimentos desastrosos são amplamente divulgados como acidentes de percurso.
UPP
Primeiro equívoco. A base da concepção da UPP é que a comunidade está em guerra. A guerra se travava entre os distintos chefes do tráfico de drogas e uma parte organizada da polícia que havia tomado a si a administração dos morros. Recordem-se os filmes Tropa de Elite I e II. Mortes, prisões e sequestros cometidos por ambos lados foram registrados pela imprensa durante décadas. Havia, portanto, em um dos lados, a milícia paralela organizada para controlar a comunidade, negociar e receber parte do resultado da distribuição da droga. Não raro, se confrontavam com a outra banda que, além de armamento moderno, gerenciava os estoques de entorpecentes para atender à intensa demanda de consumidores.
Nasce um novo conceito: substituir a polícia corrupta ligada ao tráfico pela polícia pacificadora. Em razão do primeiro equívoco de que as comunidades estão em guerra, a polícia entra nelas para exterminar um dos contendores com tanques, helicópteros, caminhões de soldados armados da polícia militar, do exército, da marinha e da aeronáutica.
Numa guerra não morrem apenas soldados como se viu e se verá ao longo do tempo. Que espera do pacificador uma comunidade em guerra? Que o pacificador elimine ou sane a causa da guerra. Que ponha no lugar da causa da guerra a causa da paz.
A polícia não tem causa de paz para oferecer. Na prática, a polícia pacificadora matou pessoas ditas criminosas que têm mãe e pai, quando não são eles pai e mãe. A polícia pacificadora matou cidadãos inocentes, extorquiu dinheiro, roubou, mentiu, chantageou pessoas. A polícia pacificadora expulsou da comunidade, com o critério da limpeza humana, pessoas que ali nasceram, brincaram e têm raízes pátrias. A polícia, à força e com poder de fogo, dividiu famílias e grupos de amizade. Eliminam-se pessoas. A droga permanece.
Segundo equívoco. Quem sustenta o Shopping Iguatemi? Ninguém mais do que os milhares de consumidores que ali vão para abastecer-se de bens úteis ou supérfluos. Quantos pequenos negócios foram eliminados pela guerra empresarial movida pelas megaempresas em nome da escala econômica e do barateamento dos produtos?
Quem sustenta os “supermercados” de variedades de drogas instalados nos morros e favelas do Rio de Janeiro? Os consumidores de drogas da Zona Sul do Rio, jovens que buscam alternativa à mesmice da vida cotidiana, executivos que precisam mostrar capacidade e eficiência, políticos, altos funcionários públicos e até molambos humanos de rua que perderam o endereço de sua identidade. Ninguém refreia a oferta se a demanda é intensa.
Polícia pacificadora não agrega nada à educação, à saúde, ao emprego, à remuneração justa, ao transporte público e à própria segurança coletiva. É próprio da polícia que conhecemos instalar o medo, a submissão, o uso da força, a denúncia remunerada, a corrupção, a mentira, a perseguição. A morte do pedreiro Amarildo dos Santos e a mulher presa e baleada, arrastada por policiais, envolvidos em outros assassinatos, ao longo de uma avenida do Rio de Janeiro, são ações típicas de soldados em guerra.
A polícia, treinada para usar armas e matar, sabe que uma ação gera reação na mesma ordem e na mesma intensidade. Contabilizam-se dezenas de mortos nas “comunidades pacificadas”. No último ano, três policiais foram mortos e 24 feridos. A revolta e a indignação das pessoas desarmadas sugerem que não se pode falar em pacificação policial. Com as UPP se estabeleceu, na prática, a pena de morte.
UPP ou UPP
Tivesse o governo do Rio de Janeiro proposto Unidades de Políticas Públicas, a exemplo de Bogotá (O aço que domou Bogotá), com ampla participação popular, funcionários preparados para o diálogo, ações coletivas para proteção ambiental, dadas as condições geográficas da área, abastecimento de água, tratamento de esgotos, sistema de coleta de lixo, transporte alternativo, escolas, diversão, lazer, estímulo à arte e à música, postos de saúde eficientes, segurança inteligente baseada na aproximação de pessoas e não na simples prisão ou eliminação de cidadãos, o papel primordial da polícia poderia consequentemente ter melhor êxito. A teoria dos expurgos foi testada durante dezenas de anos na União Soviética (Stálin e Cia,). Os resultados negativos caíram sobre gerações posteriores como herança de equívocos ideológicos, maniqueístas e administrativos.
Um sistema de diálogo e cooperação da comunidade eliminaria termos como “bandidos”, “criminosos” que generalizam os comportamentos e incitam a polícia a cometer também atos criminosos justificados como acidentes de trabalho. O diálogo da cidadania deve preceder à ação policial.
O terror é instalado pela UPP, pois as ameaças são permanentes vindas de policiais armados ou de comerciantes de drogas a moradores que outrora foram beneficiados por estes em razão da ausência crônica de políticas públicas dos governos.
Não há condições reais de pacificação se as políticas públicas em cumprimento da Constituição não chegam às comunidades. Muitos benefícios reais foram oferecidos pela organização do narcotráfico à comunidade dada a ausência do Estado. Esse boleto também é cobrado pelo terror de um e outro.
Resta para a polícia pacificadora controlar a demanda e o consumo de drogas que são a verdadeira causa da existência de “supermercados” de entorpecentes cujos verdadeiros donos e herdeiros não são perturbados.
Os fatos mais recentes de mortes e prisões de ambos lados confirmam a opinião de analistas sociais de que as UPP, concebidas na área policial, são uma declaração de guerra à organização distribuidora de drogas instalada dentro de uma comunidade e, portanto, parte integrante dela durante décadas.
Nessa complexa organização social, consolidada há décadas, é virtualmente impossível separar relacionamentos familiares, culturais, econômicos e políticos com ações policiais. Isto é, não é possível eliminar um elemento da equação social extinguindo apenas os altos mandos do tráfico, pois o comércio de drogas é sustentado por fatores externos à comunidade. Pode-se dizer que o comércio de drogas possui auto-organização que não se elimina com a prisão ou a morte de alguns chefes. Ela rebrota do próprio tronco.
O comércio de drogas tem experiência milenar. Classificado como produto ilícito, exige um tipo de organização complexo capaz de atender a demanda persistente e burlar os controles legais. Os chefes da organização se estabelecem numa hierarquia empresarial cuja competição agregou o uso de armamento para defesa de seu funcionamento e dos valiosos estoques. O comércio de armas está intimamente ligado ao comércio de drogas. Além de outras, as guerras têm razões econômicas. O tráfico de armas tem tido, em muitos casos, a participação da polícia e de militares da ativa.
CRIATIVIDADE DESTRUTIVA
Uma organização de guerrilha militar para comercialização de um produto ilícito não se justifica. O armamento simples ou sofisticado, cuja função é eliminar pessoas, faz parte da criatividade destrutiva que caracteriza o estado primitivo da evolução cerebral. Declarar guerra para preparar a paz podia ser útil ao Império Romano. A fila humana andou mais de três mil anos depois disso. Há que encontrar na criatividade construtiva mecanismos de conversação e diálogo generosos, educativos e de saúde pública, que alimentem a organização social ecumênica, plural, capaz de respeitar as diferenças e as diversidades humanas.
Enquanto durarem as ações comandadas pela organização policial com o fim de estabelecer uma ordem policial de convivência, as mortes continuarão de lado e lado.
A concepção e a implantação de políticas públicas têm nas UPP policiais um obstáculo de origem. Ações administrativas pontuais, mesmo importantes, para efeito de propaganda oficial beneficiam alguns ou até parte da comunidade. No entanto, o conflito permanece no âmago da organização social comunitária.
As ações do governo para atender ao conjunto de necessidades das comunidades ocupadas pela força militar são mal planejadas, ineficientes, sem continuidade nem participação dos cidadãos nas decisões e dependentes do comportamento policial autônomo. A ideia de guerra permanece.
A definição de crime organizado se restringe apenas ao grupo armado que controla as agências distribuidoras da droga? Ou atinge também os produtores e consumidores do produto? Por que foram selecionadas as comunidades dos morros cariocas para atacar o “crime organizado”??? A polícia e seus investigadores da Coordenação de Repressão às Drogas (CORD) têm desarticulado grupos de distribuidores de entorpecentes em São Paulo, Rio, Porto Alegre, Brasília e outras cidades.
Esses distribuidores circularam há anos pela Esplanada dos Ministérios, em Brasília, abasteceram universitários e funcionários graduados de órgãos públicos, sócios de clubes, médicos, advogados e juízes. A classe média e alta, em qualquer parte do país nunca terá o privilégio de ser controlada por uma UPP. Elas são meras consumidoras de droga e garantem a acumulação de fortunas aos distribuidores.
Há uma reserva de milhões de reais para o consumo de drogas, desde o crack mais ordinário à escama de peixe da cocaína. Essa reserva está protegida pela constituição brasileira. Seus legítimos proprietários estão dispostos a investi-la em drogas. O fornecedor é apenas um empreendedor de risco. Se fracassar por descontrole ou desonestidade na prestação de contas, as leis do tráfico o punem com morte. Se cair nas malhas do CORD, em nada modifica o volume da reserva disponível dos consumidores para futuras transações. Se presos, os distribuidores responderão em liberdade. A falta de feijão na gôndola do supermercado não extingue a vontade de comer uma suculenta feijoada.
TABU PERSISTENTE
Permanece o tabu da questão: a legalização do comércio da droga. O comércio da droga depende em grande parte do consumo contra o qual nenhuma guerra será eficaz. Por que não legalizá-lo? Trata-se de uma economia de bilhões sobre os quais não incidem impostos. Talvez este seja um dos motivos da guerra. A sonegação de impostos, com certeza, atingirá também o comércio de drogas como é praticada pela grande indústria e pelo alto comércio. A Receita Federal produz mecanismos sofisticados para cobrar inadimplentes.
Os bilhões de dólares que nos está custando a guerra contra a distribuição de drogas certamente serão somados ao PIB e não à paz social.
Ou queremos construir uma organização social e política comandada pela força policial mediocremente preparada para garantir a convivência humana?
A convivência social tem que evoluir para o diálogo e a participação dos cidadãos nas decisões adequadas de políticas públicas e não para o terror das armas prontas a disparar em todas as direções.
26.3.2014
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