Que seria dos finlandeses,
suecos, dinamarqueses e noruegueses se, em vez de administrar a riqueza
produzida por todos e para todos os cidadãos, os governos daqueles países
tivessem optado, há duzentos anos, pela assistência aos menos favorecidos,
filhos de agricultores ou de serviçais de reis, rainhas, príncipes e princesas?
Esses países fizeram a opção
pela educação pública para todos, independentemente de origem ou localização
geográfica. Todos os cidadãos são iguais perante o conhecimento. As
oportunidades futuras esperaram por eles.
O mito da opção pelos pobres
sugere uma categoria de pessoas inválidas, incapazes, deficientes com marca
biológica e genética específica, cuja debilidade requer cuidados permanentes do
Estado invasor, semelhantes aos que se destinam a tribos indígenas. Conclui-se
que pobres geram pobres num espaço de pobreza, assim como os indígenas se
reproduzem na selva.
Quem é o pobre?
A opção pelos pobres corresponde
à ideia que se tem deles para justificar as ações propostas para atendê-los. O
critério básico dessa opção é que o pobre precisa de dinheiro para sobreviver e
se reproduzir. Leia-se: O pobre não é. O pobre precisa ter. Não dispõe de
dinheiro para construir uma casa decente, ter água potável, canalização do
esgoto, recolhimento de dejetos e lixo. Mora em agrupamentos improvisados,
favelas, mangues, palafitas com quase todas essas deficiências. Padece de
desnutrição. Alimenta-se mal. São características de pobreza material.
Há uma escala de pobreza e
miséria com graduações variadas, o que permite aos governos produzir
estatísticas da eventual ou real mobilidade de um patamar de pobreza a outro
sem afetar a opção pelos pobres. Nunca se sabe ao certo qual dessas graduações
é mais numerosa ou mais importante para a elaboração de programas: se os
miseráveis, os que vivem em extrema pobreza ou os simplesmente pobres, acima ou
abaixo da “linha de pobreza”. Uns são mais excluídos que outros, por isso as
ações empreendidas não alcançam a todos ao mesmo tempo e com a mesma
intensidade. Ou seriam tipos de pobreza cada qual com sua genética e sua
patologia biológica e social?
Qual é o tamanho da população
pobre do Brasil? Ninguém sabe. Ninguém. O que se sabe é um número contido num
percentual. É sobre esse percentual impreciso que se elaboram cadastros, se
concebem, produzem e executam todos os programas para os pobres.
Por que a opção pelos pobres?
Qual será o fundamento
filosófico que anima a permanente opção pelos pobres e gera, ao mesmo tempo, um
estado de pobreza sustentável? Num Estado democrático ou autoritário há sempre
um jogo e uma disputa política pela manutenção do poder e da autoridade em mãos
de um grupo, de um partido, de uma ideologia.
Os pobres de espírito, isto
é, os que reconhecem seu estado de pobreza e aceitam viver em tais condições de
penúria material e social são “dignos do reino dos céus”, isto é, dos
benefícios paternais do governo. Pobres, nesse contexto, são os que reconhecem
seu estado de pobreza pública e estatisticamente declarado com direito a
benefícios e favores. Adquirem, portanto, o direito a favores programáticos que
ninguém ousa contestar para não ser acusado de elitismo ou neoliberalismo. Os pobres aceitam o estado de pobreza por
ser útil a eles e conveniente aos que o sustentam.
O jogo do poder conta com um
amplo leque de bondades e favores distribuídos preferencialmente aos que
apoiam, alimentam e sustentam os governantes. Nesse jogo do poder, conta-se com
o reconhecimento dos beneficiados pelos favores recebidos. Uma forma de reconhecimento
é não contestar o poder; é aplaudi-lo, defendê-lo e mantê-lo funcionando nesse
ritmo de concessão de favores.
Mas os obséquios não são
distribuídos uniformemente. O poder sabe manter divisões de classes, distintas
categorias de grupos e astutamente adéqua o discurso, a distribuição de
benefícios e as justificativas. Possui meios para controlar a luta entre os
mais e os menos favorecidos. Tolera os desafios e sabe que as diferentes
classes requerem atenções especificas. Há categorias de súditos que exigem mais
favores que outras e manifestam sua vontade de tempos em tempos. Há outras
categorias de beneficiados que, pela sua posição no tablado social, não
reclamam melhores favores. É a categoria dos pobres. Pobres não fazem greve.
Eles têm, hoje, o que nunca tiveram. Reclamar mais é correr risco de perder o
que lhes deram. O poder instituído conta com a barreira do medo e os pobres não
a ousam ultrapassar. Nem, por isso, são menos reconhecidos pelos favores
recebidos. A gratidão é o mais sublime
gesto do reconhecimento da dependência do favor recebido.
Justificativas
Os de cima, os governantes
sabem o que é bom para os pobres. Dão-lhes gratuitamente meios materiais como
se tirassem do próprio bolso. Transformam-se em pais e benfeitores para criar a
dependência afetiva, dominar as emoções dos pobres com atos formais de atenção.
Ao mesmo tempo, cria-se o fascínio amoroso pelo pobre para que outros doem o
supérfluo. Preparam-se ocasiões especiais em que os pobres são convidados a
festejar o Natal, a Páscoa, o Carnaval, o Dia da Criança pobre, o Dia das Mães
pobres sem esquecer o dia das urnas. Publicam-se por todos os meios de
comunicação as emoções públicas da generosidade dos doadores e reconhecimento
lacrimoso dos beneficiados.
Forma-se uma corrente de
apoio à retórica, aos programas e ações envolvendo pessoas, ministérios,
igrejas, ONGs, meios de comunicação de massa para consolidar a dependência e
criar a consciência de pobreza sustentável. Há que se repetir nos discursos,
nos programas, projetos e ações públicas a contínua opção pelos mais pobres.
Toma-se o cuidado de
desvincular o poder benfeitor de comportamentos antiéticos e imorais que rolam
a seu redor para que a imagem paternal não se manche diante dos favorecidos.
Intensifica-se a publicação
de estatísticas complexas, detalhadas (por idade, sexo, cor), com percentuais
abundantes para comprovar a existência dos pobres, a atenção dada a eles, as
melhorias obtidas, preservando a sustentabilidade da pobreza. O Estado
consegue, ao dar comida e acesso aos bens materiais a milhões de pobres, a
mágica social de manter neles a consciência da pobreza sustentável e a
dependência política.
Ferramentas
Como sustentar o estado de
pobreza e como fabricar pobres? Uma das ferramentas é mantê-los a uma prudente
distância geográfica, social e política de todos os centros de decisão. As
técnicas e métodos participativos se destinam também e, em muitos casos, a ter
consciência da própria realidade. As decisões sobre as ações programadas são
comunicadas e justificadas segundo critérios de pessoas ausentes à realidade
estudada. As obras e os orçamentos, executados ou não, formam, antecipadamente,
parte das estatísticas como fatos consumados.
Os programas obedecem a mapas
geográficos da pobreza que indicam onde estão os pobres e a rota de sua
mobilidade. A área rural, as periferias das cidades, os locais que oferecem
subempregos (estacionamentos, semáforos, portas de banco e supermercados), as
funções semiescravas de crianças, mulheres e homens (empregados domésticos,
vigilantes noturnos), ruas, marquises, casas e edifícios abandonados, pontes e
viadutos compõem o mapa da pobreza. Esse mapa engloba todos os graus da exclusão,
desde a extrema pobreza miserável até a elite da pobreza nas favelas de grandes
cidades.
Processo gradual da pobreza
sustentável
Introduzir a população pobre
nas estatísticas é o primeiro passo da sustentabilidade. É preciso saber
quantos são e onde estão para mantê-los num rigoroso controle de reprodução
social. A sustentabilidade da pobreza não conflita com o ter, com obter
objetos. Estabelece-se a ilusão da igualdade do ter, de entrar nos centros
comerciais, de adquirir bens de uso comum. O que a pessoa é, reveste-se com o
que tem. Transforma-se a possibilidade de consumir bens em sonhos de realização
pessoal: aparelho de TV, computador, celular, geladeira, fogão, máquina de
lavar, carro, casa e dezenas de outros objetos de conforto disponíveis a todos.
Nada disso seria importante sem a cédula de identidade e o título de eleitor,
portas de entrada para as manipulações estatísticas.
Na produção criativa da
riqueza, há uma reserva de áreas de trabalho para os pobres onde a remuneração
é baixa, insuficiente para as necessidades básicas e ao conforto: lixões,
agricultura de subsistência, subempregos diversos e improdutivos. No processo
de sustentação da pobreza, separa-se a comercialização dos produtos da etapa de
produção, seja primária ou processada. Mecanismos fundamentados na proteção do
consumidor tendem a desconsiderar certos custos da produção (tempo, mão de
obra, investimentos) para que a intermediação feita por agentes externos lucre
com os preços de venda.
Fomenta-se, dessa forma, uma economia solidária para
os pobres. Elabora-se a cadeia
produtiva da pobreza, isto é, os elementos de manutenção da pobreza produtiva
são solidários: baixa produção, comercialização terceirizada, processamento de
produtos de qualidade inferior se integram num sistema de autogestão da pobreza.
Os dados da economia solidária dos recicladores indicam a existência de 30 mil
empreendimentos dessa categoria, congregando 3 milhões de trabalhadores, muitos
deles com renda menor do que um salário mínimo.
Nova ética da dependência
Em reuniões de avaliação de
programas destinados à população pobre (Bolsa Família, Luz para Todos,
cisternas, Minha Casa Minha Vida, dezenas de outras ações de ONGs, prefeituras,
secretarias de bem-estar, associação de moradores) são correntes as expressões
formuladas espontaneamente pelos beneficiados desses programas: “o lugar é
pobre, o bairro é pobre, aqui a maioria é pobre, aqui é longe de tudo”.
Sentem-se parte dessa pobreza coletiva. Adquirem a certeza de que são pobres.
Essas manifestações não consideram a TV, a geladeira, o celular e outros objetos
da chamada inclusão como extintores do estado de pobreza.
Por astúcia e medo de perder
o direito de viver no estado de pobreza com os benefícios que recebem, é humano
apelar para as limitações em que vivem comparadas com a riqueza exposta nas
propagandas, no desperdício de dinheiro público, no roubo ou desvio de milhões
de reais ou nas novelas de TV. É uma tática política para permanecer na fila da
distribuição de sobras e liquidações de orçamentos.
Consolida-se a consciência da
pobreza como condição humana, social e política para continuar recebendo
atenção especial. Prolonga-se indefinidamente o estado de dependência com um
sistema de aprendizagem e ensinagem deficiente, limitado; com serviços públicos
de saúde e transporte inadequados. Toma-se a precaução de consolidar a
dependência mantendo a população pobre longe dos centros de decisão cultural e
política (teatros, cinemas) oferecendo, de tempos em tempos, diversões de
massa.
O ponto mais delicado para
garantir a sustentação do estado de pobreza e a dependência de favores do
Estado é dosar prudentemente o acesso da população pobre ao conhecimento
crítico, limitando a capacidade e a liberdade de pensar.
Por que será que os
governantes de nosso país não se propõem a fazer da educação a principal
ferramenta para que toda a população brasileira, em todos os estados e regiões,
se aproprie das imensas oportunidades que a evolução social, cultural, política
e econômica lhes oferece? Seria optar por uma ação universal que atingiria
indistintamente toda a população em qualquer lugar do país.
Ao invés de preparar os
cidadãos para responder aos desafios que se apresentam na construção de uma
sociedade justa, os governantes lamentam a falta de capacidade e de
conhecimento da população para agarrar as oportunidades e executar com
eficiência, eficácia e segurança os projetos mais e mais complexos do dia a
dia. A continuar nesse rumo, o que será desastroso para o país, as perspectivas
apontam para a consolidação das desigualdades nos vários Brasis.
Estou convencido de que somos
uma população excessivamente grande num país demasiadamente imenso e complexo para
depender das precárias capacidades administrativas de governantes que ensaiam
experimentos casuísticos, perdidos na selva sem bússola.
4 comentários:
Caro Eugênio Giovenardi,
Fernando Henrique Cardoso foi acusado por suas ideias neoliberais justamente porque queria acabar com essa premissa de "pobreza endêmica" da população. Poucos entenderam o que ele queria com seu governo e deu no que deu. Em seguida, entrou Lula, analfabeto de pai e mãe, que, pensando ter o rei na barriga e proclamando as quatro ventos sua própria ignorância, continuou servindo aos interesses das oligarquias e do imperialismo sobretudo. Com o PT há 10 no poder, o Brasil passou a viver essa lamúria ética e moral, sem investimentos nas áreas de EDUCAÇÃO, SAÚDE, TRANSPORTE E SANEAMENTO BÁSICO. Criou-se o clima para o quadro atual que você expõe magistralmente em seu artigo. Agora, com o atual governo, a coisa tende a piorar, pois além da herança ideológica, essa turma busca manter-se no poder a qualquer custo. O Brasil, meu amigo, dificilmente encontrará seu caminho para o desenvolvimento DE UMA NAÇÃO como aqueles países citados no seu texto. Parabéns pela exposição de suas ideias enriquecedoras. Grande e fraterno abraço. João Carlos Taveira
Obrigado, Taveira.
Quando a sociedade humana olhar para o outro como pessoa e não como pobre, teremos dado um passo tão gigantesco quanto nossa descida da árvore, há milhares de anos.
Eugênio
Caro Eugênio:
Estás coberto de razão e argumentos, é difícil contestar que a "pobreza é sustentável". Que o digam os pequenos produtores rurais, mudando para as periferias urbanas, continuando pobres. Qualquer cidade, mesmo as pequenas têm um anel de periferizados, geografica e socialmente. A partir do Congresso a "democracia" dos parlamentares é para seu (deles) proveito e "TER", não de fazer, de olhar os OUTROS, mesmo os que os SERVEM. Donos que são da "Casa Grande", se locupletam. E a senzala, que se curve, inclusive diante da "bancada ruralista" e, agora, da "bancada evangélica" raivosa.
Portanto, concordo com teu escrito e será bom divulgá-lo para que possa existir uma rede de real solidariedade/humanidade.
Abraço
Aldo Paviani, Geógrafo, UnB
Caro amigo Eugênio.
Concordo com suas argumentações, e gostaria de acrescentar algo!
“Somos” em menor quantidade, porém com maior qualidade de discernimento e visão real do que está por trás da sustentabilidade da “POBREZA”! Acredito que está na hora de “NÓS” começarmos a questionar mais “O QUE FAZER” do que “O QUE ESTÃO FAZENDO”!
Sinto-me “RESPONSÁVEL” parcialmente pelo que está acontecendo e também “IMPOTENTE” enquanto “SÓ” para tentar qualquer coisa!
Uff... Foi só um desabafo!
É a primeira vez que visito seu Blog, parabéns pela iniciativa!
Denis Medeiros, Engenheiro, UNITAU.
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