domingo, 24 de março de 2013

AS DIATRIBES DE UM PRONOME POSSESSIVO




A mulher com quem convivo há quarenta e quatro anos, não ininterruptamente, pois o próprio tempo mutante, o espaço e as circunstâncias humanas conspiram contra a convivência linear, não é minha.
A mulher com quem se convive também é definida como esposa (do latim spondere) que responde afirmativamente ao compromisso com o varão; consorte (no sentido de consorciar) do contrato social; cônjuge na caminhada (jungir com); companheira que comparte do pão (cum panis). Lembrem-se de que o português é a “última flor do Lácio”.
A mulher é o todo feminino da espécie humana, assim como o varão é o todo masculino. Macho e fêmea fazem parte do código biológico da reprodução. A lei da convivência entre os da mesma espécie, porém, é afetada por um pronome possessivo.
O pronome possessivo “minha” esposa ou “minha” mulher deriva dessa resposta dada ao homem forte, viril, varão. Resposta, na lei biológica, significa que a mulher aceitou ou foi submetida à fecundação. O ato da fecundação não gera direito de propriedade. As diferentes culturas, ao longo do tempo, compuseram rituais distintos para essa resposta.
O pronome possessivo se generalizou na prática da propriedade privada sujeita à defesa incondicional, à pilhagem, à alienação, ao roubo. O possessivo não é absoluto nem intransferível. Pode-se dar toda ou parte da propriedade ou simplesmente desfazer-se dela, abandoná-la. Ou desejar possuí-la. Ou destruí-la.
Pensei longamente nesse pronome possessivo durante os doze dias em que a mulher com quem convivo por mais de quatro décadas permaneceu na UTI de um hospital entre a vida e a morte.
Que sentido tem o pronome possessivo em se tratando de vida? O possessivo se refere a que aspecto da vida? O que pode ser meu do mistério vida alheia, vida de outro ser? O que fica da vida compartida, consorciada? Até onde ou em que ponto a lei, os códigos da convivência participante da vida se confundem com as leis biológicas que separam uma vida da outra?
Duas vidas paralelas caminham lado a lado para separar-se no infinito. Um infinito intemporal, súbito, imprevisível. O pronome possessivo é uma deturpação do mistério vida. A convivência, na singeleza desse mistério vida, parece-me o privilégio transcendental dos seres vivos que se reconhecem no olhar e nas palavras que brotam de seus pensamentos.
A vida compartida, sem a diatribe do pronome possessivo, é a expressão mais generosa da liberdade de ser, de estar, de viver e de reintegrar-se no universo.

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