quarta-feira, 8 de março de 2023

ÁGUA É ÁGUA

 

ÁGUA É ÁGUA

A água imóvel dos lagos, as águas sussurrantes do riacho, as águas que despencam da pesada nuvem, as águas que se lançam destemidamente pelas cascatas, todas as águas me fascinam.

Minha vida navega nas águas do meu corpo.

Não nasci no signo de Aquário para enfrentar correntezas.

Não sou do signo de Peixes para viver mergulhado nas profundezas.

A água que trago em mim é atraída pela água que dá vida aos seres deste planeta.

Não importa que ela venha de cima com a força da tormenta.

Não importa que brote de baixo, da escuridão do solo num filete brilhando a prata.

A água, em qualquer circunstância, me seduz.

Ela é abundante no Sítio das Neves. E antiga.

Corre sem parar há milhões de anos.

Um pequeno olho-d’água espia, por traz das rochas, o grande vale por onde passará, juntando-se a outros minúsculos que descem pelas grotas sombreadas rumo ao mar.

As águas, escorrendo silenciosas ou murmurando segredos entre as pedras, me chamaram, me segredaram, me ofereceram um pacto de cooperação.

Compreendi a mensagem da água.

Ela me pediu para permanecer mais tempo no lugar onde nasce, para desfrutar da amizade das árvores, das flores e dos pássaros que ela dessedenta.

Tempo tem ela para juntar-se a outras águas e festejar com elas as celebrações nas ondas e nas praias do mar.

Elas me ensinaram que nenhum rio, pequeno ou grande, chega sozinho ao mar.

Atento aos desejos da água, e aos meus, nas grotas profundas, construí com pedras, folhas de catolé, paus secos e terra babosa de cupim pequenas barragens de contenção.

A água acumulada em pequenos lagos, reflete a cor do céu, azul ou cinza.

A água não para. Aumenta, engrossa o laguinho e se infiltra entre pedras e paus e segue lentamente sua aventura solitária até encontrar outras águas.

Ao seu redor, novas plantas e flores brotam, pássaros vêm nela banhar-se.

Cobre-se a terra de verde de variados tons.

As águas de um laguinho, no ponto mais alto, visitam os lagos a jusante espalhando vida e beleza.

A água e eu construímos um santuário.

O santuário das águas.

No Sítio das Neves, tudo é santo.

Há santos grandes e pequenos.

O santo angico, o santo jatobá, a santa aroeira, o santo jacarandá, a santa orquídea-do-cerrado, o santo catolé.

O santo pica-pau, o santo colibri, o santo jacu, a santa seriema.

O santo tamanduá-bandeira, o santo mão-pelada, a santa jararaca, a santa jararacuçu, a santa cascavel.

O cerrado é a basílica de nossa senhora caliandra e catedral de santa canela-de-ema.

E todos os santos que não foram batizados se refugiam nesse santuário.

A água sabe de tudo o que acontece nesse santuário e, eu, também.

Só não sabem os incendiários que põem fogo no cerrado.

Só não sabem o mal que fazem às águas os que furam poços artesianos.

Só não ouvem a voz das águas os desflorestadores de nossas matas.

Aquelas águas que inundaram cidades, afogaram pessoas e bichos, foram desprezadas no berço, esquecidas nos primeiros passos da infância.

A revolta das águas é uma lei da natureza.

Amo de paixão minhas águas porque elas se apaixonaram por mim.

O que eu sinto por elas e pelas árvores, elas sentem por mim.

 

6.3.2023

 

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