IRREGULARIDADE
DAS CHUVAS
PROTEÇÃO
DOS MANANCIAIS
Eugênio
Giovenardi
Ecossociólogo
MUDANÇAS CLIMÁTICAS
Há evidências sentidas e comprovadas,
não só pela espécie humana, como por espécies animais e vegetais, de mudanças
climáticas em curso em nosso planeta. As consequências mais trágicas se referem
ao risco de extinção de milhares de espécies com grave redução da
biodiversidade e, em consequência, ocasionando mortes em cascata nas próximas
décadas.
As mudanças climáticas se manifestam
pelo aquecimento global e provocam, ao mesmo tempo, regimes irregulares de
chuva, períodos de seca imprevisíveis, com situações favoráveis a incêndios
implacáveis, tempestades e inundações em distintas regiões, tanto nas cidades
quanto nas áreas agrícolas.
A PRESSÃO POPULACIONAL
A irregularidade das chuvas e a escassez
de água, fenômenos físicos naturais, se agravam com o crescimento da população
humana e consequente diversificação de suas atividades. No ano 1800, a
população mundial dispunha de 29 hectares por habitante. Em 2018, a
disponibilidade de espaço reduziu-se a 2,7 hectares, com grave pressão sobre os
bens naturais necessários à vida. No Brasil, a disponibilidade atual é de 4,05
hectares por habitante. No DF, a área disponível se reduz a 1.871 m2
por pessoa, fato que aumenta, ano a ano, a pressão sobre a débil capacidade
hídrica da região. Os investimentos vultosos para retirar água do lago Corumbá
IV, com o fim de abastecer as torneiras dos brasilienses, comprovam a escassez
de água, no DF, e indicam a necessidade de proteger os mananciais que estão
mais próximo dos usuários.
PRODUÇÃO DE ALIMENTOS E URBANIZAÇÃO
A produção de alimentos, vegetais e
animais, se faz, de forma progressiva, há 20 mil anos, com a eliminação de
florestas protetoras dos mananciais e com uso intensivo de água.
A urbanização, a impermeabilização de
imensas áreas, o desvio de cursos de águas, a concentração de máquinas e
aparelhos elétricos, a circulação de carros movidos a combustível fóssil geram
e disseminam o calor, poluem o ar e a água. As cidades diversificam o uso da
água, provocam drástica mudança ambiental pela construção de edifícios altos,
pela alteração das correntes de vento e, pela supressão da vegetação original,
eliminam áreas de mananciais e facilitam as inundações urbanas.
MEDIDAS AUXILIARES
Para fazer face à escassez progressiva
de água, uma das medidas recomendadas, entre outras, é seu reuso. Um dos
aspectos positivos é a duplicação do uso da mesma água. O reuso da água, porém,
tem custo adicional com equipamentos ou processos de limpeza. O aspecto
eficiência, no uso de parte da água usada, contrabalança, na mesma proporção, o
custo adicional. O reuso da água contaminada com detergentes, sem os cuidados
necessários, gera focos de degradação ambiental.
Alguns aspectos negativos do reuso se
referem à acomodação das pessoas e ao estímulo a gastar mais água com o
pretexto de usá-la duas vezes. Favorece a indiferença sobre a origem da água, a
rede de abastecimento e a preservação dos mananciais. Assume-se que aquelas são
tarefas de órgãos públicos.
RESERVATÓRIOS E POÇOS ARTESIANOS
As cidades são abastecidas por águas
represadas em rios, caso de Brasília, ou extraídas de aquíferos subterrâneos de
grande profundidade, como na região paulista de Ribeirão Preto. As represas
acumulam as águas do rio que, por sua vez, as recebe de nascentes e das chuvas.
Os dados recolhidos nos últimos sete
anos, no Distrito Federal, mostram uma retração no volume de águas da chuva e
irregularidade no início e no término do período habitual das águas. O fenômeno de chuvas localizadas, com mais e
menos abundância, vem sendo captado por pluviômetros disseminados em distintas
áreas do DF. Em 2017, Brasília foi afetada por volumes insuficientes de águas
da chuva. Os córregos e nascentes se retraíram e o volume de chuvas não foi
suficiente para recarga dos aquíferos e aumento do fluxo das nascentes. A
população, em maior ou menor grau, sofreu um longo período de racionamento (513
dias).
O fenômeno natural da irregularidade das
chuvas, com baixo volume de água, foi agravado pelo aumento da população, pela
urbanização descontrolada e pela degradação do bioma com destruição de dois
terços da vegetação nativa do DF.
Milhares de nascentes e grande número de pequenos cursos de água foram
soterrados, tanto pela urbanização quanto pelas tradicionais práticas
agrícolas. A moderna agricultura continua usando três quartos da agua
consumida. A perfuração clandestina de milhares de poços tubulares ou
artesianos, no DF, é uma das causas que põem em risco a vida das nascentes e
esgotam as reservas dos aquíferos subterrâneos.
ÁGUAS ABAIXO E ÁGUAS ACIMA
Como conviver e que atitudes práticas
podem minorar os efeitos das mudanças climáticas, do aquecimento global,
sentido localmente, da irregularidade das chuvas e do baixo volume de aguas
pluviais? Um grande volume de chuvas não significa necessariamente o enchimento
de reservatórios. Sem a proteção vegetal em torno das nascentes e das
barragens, as águas volumosas e velozes provocam mais estragos do que
benefícios. As inundações anuais deveriam despertar os administradores públicos
e a população para urgente mudança de atitudes e comportamentos em relação aos
fenômenos naturais.
Água não é fenômeno passageiro, nem é
elemento novo no planeta. A água é velha. Tem experiência. Teremos que aprender
com ela. Onde ela está? Com quem convive? Quem é sua associada para lhe ajudar a correr desde
a nascente até o mar? A idade da água e dos fenômenos naturais indica que as
medidas a serem executadas devem se prolongar por várias décadas. Embora
atrasados no tempo, há que se continuar e intensificar, em benefício da
biodiversidade, a efetivação de medidas de proteção aos mananciais timidamente
iniciadas por organismos públicos e privados.
Há mais de 40 anos, quando comecei a
conviver com o bioma Cerrado, segui um curso pequeno de água, a montante, na
direção da nascente. Achei o olho d’água escondido numa espessa cabeleira de
vegetação nativa. Não sei ainda de que profundidade vem. Sei que convive com
raízes e está associado, há milhões de anos, com árvores, xaxins, gramíneas,
pinheirinhos do cerrado, quaresmeiras e inumeráveis variedades de arbustos.
Constatei, ao longo de anos, que as
áreas de mananciais são vítimas de incêndios anuais e da agricultura
tradicional. Estão expostas à poluição provinda de rodovias, tanto em monóxido
e dióxido de carbono quanto em dejetos lançados às margens, ou diretamente em
córregos e rios.
Em nossos tempos, são raríssimos os
humanos que tiram água da fonte para suas múltiplas necessidades. A maioria dos
humanos nunca viu um olho d’água. Hoje, a espécie humana depende da torneira,
da represa, do rio, do poço artesiano. A maior parte das águas está poluída e
precisa de grandes investimentos para ser potável.
AÇÕES ESTRUTURAIS DE LONGO PRAZO
No Brasil, os reservatórios de água para
abastecimento das populações não alcançam receber o volume para o qual foram
construídos. Todas as represas estão expostas à evaporação de parte da água
represada e à poluição provinda da circulação de automóveis, de agrotóxicos e
esgotos urbanos. Uma represa é uma grande panela sem tampa da qual se retira
água para diferentes finalidades. A panela tem uma entrada e uma saída. A
função da caixa é receber e reter água. O reservatório não produz água.
A tendência dos administradores
públicos, em relação ao abastecimento de água à população, é fazer grandiosos
investimentos águas abaixo. Parco é o investimento em trabalho, dinheiro e
cuidados águas acima. O descaso com a principal nascente do Rio São Francisco (São
Roque, Serra da Canastra) e a queima frequente da vegetação local protetora provocaram
o aprofundamento das águas. Estancou-se o fluxo superficial. Os investimentos
águas abaixo não regularizam as chuvas, não aumentam as precipitações, não
enchem as represas, não impedem as inundações de cidades.
Quais as lições que o olho d’água pode
nos dar.
Primeiro, para garantir o enchimento de
barragens é preciso ir águas acima e conhecer os mananciais que enchem a
represa. A tecnologia disponível (satélites, drones) pode facilitar a
visualização e a mensuração do volume existente dos vários mananciais que irão
contribuir para o enchimento da represa.
Segundo, determinar a extensão
prudencial de proteção vegetal das nascentes, com indicação visual, tornando
indevassável a circulação de pessoas e animais de criação. A vegetação ampla e
massiva opera por cima, captando e retendo a água da chuva e, por baixo, infiltrando
as raízes no solo e, por meio delas, alimentando o lençol freático.
Terceiro, o reservatório estará exposto
à evaporação, por isso suas margens devem ser protegidas por vegetação em toda
sua extensão formando uma generosa mata ciliar de 50 a 100 metros de largura. As
margens de uma represa não deveriam se prestar à exploração comercial agrícola
ou pecuária. A construção de uma barragem ocasiona a destruição de grande área
vegetal. Grande parte da área destinada á proteção, no caso da barragem do Rio
Descoberto, está ocupada por atividades agrícolas que retiram água dela, sem
repô-la por meio de vegetação intensa.
O
desaparecimento do Mar de Aral,
na Ásia Central, é considerado uma das maiores catástrofes provocadas pelo
homem no mundo. Para estimular o cultivo de algodão ao longo das margens,
políticas de irrigação agressivas, realizadas pelos soviéticos, transformaram o
quarto maior lago do
mundo em um deserto. Restou apenas um décimo de sua extensão.
Se, em torno
de toda a extensão linear da represa do Descoberto, DF, calculada em 80 km
(para efeito demonstrativo), se mantivesse uma faixa contínua de 20 metros de
mata nativa, ter-se-ia uma área de 1.600.000 m2 de cobertura vegetal
permanente. As nascentes se recarregam
quando protegidas pela vegetação nativa que tem milhões de anos de experiência.
Uma precipitação anual de 1.200mm (1.200 litros por m2) garantiria a
essa área verde a captação e retenção de 1.120.000 metros cúbicos. Além de
reforço às nascentes e regulação do fluxo dos córregos tributários do Lago do
Descoberto, aumenta e melhora a infiltração e a recarga dos aquíferos. Esse
reforço se somaria aos 1.200mm que caem diretamente sobre o espelho do Lago. Esse
volume de água não é pequeno, se usarmos a inteligência para captá-lo nos
lugares certos e com vegetação adequada.
A Área de
Proteção Ambiental da Bacia do Descoberto, aprovada em 1983, não se fez seguir
do necessário sistema continuado de controle político e administrativo do órgão
responsável, para garantir o fluxo das nascentes em direção ao Lago. Como
recuperar os 37 anos perdidos? A regeneração ambiental requer tempo de várias gerações
para surtir os efeitos sobre a vegetação e os mananciais. Uma já se perdeu. As
crianças de hoje, os pirralhos do DF sofrerão as reais consequências de nossa
incúria por volta da década de 2040.
O entorno
do Lago do Descoberto, atualmente, é ocupado por zonas urbanas,
por chácaras voltadas à produção de hortaliças e frutas e
por plantio de pinus e eucaliptos. Ademais, as pressões socioambientais,
como especulação imobiliária, ocupação irregular, criação de animais de
grande porte, despejo de lixo, erosões, desmatamento e destruição das cercas de
proteção geram impacto direto sobre o lago. O reflorestamento das margens das
represas é uma solução de longo prazo, necessária e imediata, se quisermos deixar
uma herança hídrica inteligente aos nossos descendentes.
Quarto, a
represa do Descoberto não é um investimento isolado e autônomo, com motivação
recreativa ou estética. Ela foi idealizada com a finalidade de prover e
facilitar o acesso à água a um determinado e calculado número de pessoas. Há,
então, uma relação direta entre o volume de água oferecido pelas nascentes e
córregos tributários e a retirada diária dos usuários para suas diferentes
necessidades.
O volume
de água da entrada do reservatório pode ser igual, superior ou inferior à quantidade
retirada pelos usuários. No período chuvoso, seria normal que a entrada fosse
superior à saída. A irregularidade da chuva pode contradizer essa situação. No
período de estiagem, também irregular, as retiradas de água pela população
superam as entradas. Essa alternância, nem sempre é observada pelos
administradores e informada aos usuários.
A entrada
de água na represa não é diretamente proporcional à saída. A vazão das
nascentes e dos córregos tributários é variável, com períodos de decrescimento.
O consumo dos usuários é constante e
crescente, tanto pelo aumento do número de consumidores quanto pela
diversificação no uso da água.
A
barragem do Descoberto foi construída em 1974, com capacidade de armazenar
102,3 k3 (102,3 bilhões de m3). Brasília tinha, nesse
ano, 500 mil habitantes. Em 2018, segundo dados da Codeplan, o bairro Ceilândia
abrigava 490 mil pessoas.
As
informações sobre o volume das barragens, no DF, não têm sido matematicamente
confiáveis. Um sistema de sensores inteligentes ou robóticos poderá dar mais
transparência às informações com caráter educativo. O simples percentual
divulgado não é suficiente para comprometer os usuários ao consumo adequado da
água.
UMA CONTA
DE POUPANÇA
Um
reservatório de água e toda a tubulação necessária para alcançar o usuário
final constituem uma conta de poupança. O abastecimento ou os depósitos nessa
conta de poupança são de competência exclusiva da rede de nascentes, da chuva e
da vegetação protetora com a colaboração das águas pluviais. Cabe ao usuário e
ao administrador da poupança preservarem a ação dos doadores para garantir a
retirada.
Essa
parte é essencial na gestão das águas. A gestão hídrica não se esgota em
aumentar a tubulação para melhorar e favorecer a retirada de águas armazenadas
perto ou longe dos usuários. Retirar mais dinheiro da conta de poupança do que
é consignado pelo correntista, em breve pedirá empréstimos a juros
escorchantes.
O gestor
da conta de poupança das águas, diante das dificuldades naturais do clima e do
aumento do número de consumidores, manterá informado o usuário sobre a situação
real de sua conta e a quantidade que pode retirar.
O bom
senso e a ação inteligente dos cidadãos e dos administradores públicos são essenciais
para proteção dos mananciais e reflorestamento das margens dos reservatórios.
As medidas estruturais de captação e detenção das águas podem minorar os
efeitos da irregularidade das chuvas e melhorar a convivência harmoniosa entre o
homo sapiens e a natureza.
8.1.2020
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