quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

RECONQUISTA


A primeira das três etapas da recomposição do Cerrado

1.    1.  RECONQUISTA

Quando me tornei hóspede do Sítio das Neves, em 1974, encontrei uma área devastada, vítima do machado, do fogo e do pastoreio extensivo.
Dez anos passaram e me acordaram. Comecei a ouvir e compreender o Cerrado (ver erros cometidos no A Saga de um Sítio). Antes de mim houve invasores, predadores, devastadores. Não poderia comportar-me como eles. Essa área clamava por paz. E a condição posta nesse grito para obter a paz era minha retirada, meu afastamento. Deixar o espaço livre.
Depus as armas e me retirei do campo de batalha. Fora da fronteira, olhei para trás e vi flores. Experimentei, nesse instante, um sentimento duplo: orgulho de dominador ferido assinando um armistício imprevisto, e grandeza da reconciliação. Um novo olhar, um diálogo existencial, uma convivência generosa surgiu entre nós espécies vivas habitantes da mesma casa. E, ao passar dos dias e dos anos, percebi as mudanças que se manifestavam por toda a parte e em mim.
Deixada livre a zona, a reconquista do espaço é o primeiro movimento da vegetação nativa nas três dimensões: vertical, horizontal e em profundidade pela atuação das raízes em busca da água. A vegetação se reinstala. Ocupa mais espaços. Cobre o chão. Garante seu lugar. A distância do invasor facilita a reconquista. Há, em poucos dias, mais vida. Mais flores. Mais folhas. Mais pássaros. Mais insetos. A diversidade se manifesta. A interdependência dos seres vivos busca o equilíbrio. É uma fase de grande sensibilidade. O ponto de equilíbrio será sempre tênue, frágil e temporário, mas constante.
No período da reconquista, outras espécies oprimidas por falta de condições ambientais, recobram espaço. As mudanças climáticas das distintas estações, como nos meses chuvosos, produzem um intercambio cooperativo entre as espécies e o crescimento vegetal é “homogêneo” segundo a estrutura individual das plantas. As maiores guardam água nas folhas, nas galhadas e dão intensa umidade ao ar. As menores, como as gramíneas e arbustos formam um lençol de água no chão e a distribuem às vizinhas. A competição entre elas não se interrompe, mas sem romper o processo de cooperação.
A busca da comida é permanente. Em cada fase do crescimento e a cada variação do clima as plantas e os animais têm funções próprias, determinadas pela estrutura do poder orgânico: brotar, rebrotar, abrir flores para os fecundadores (vento, abelhas, pássaros), mostrar o produto e pô-lo à disposição de outras espécies, sorver a água da terra. Ou, do lado animal, localizar o alimento, agrupar-se a um bando, acasalar-se, nidificar, pôr ovos, chocar ou aguardar o parto, cuidar da prole, alimentá-la, defendê-la, transmitir-lhe a cultura de sobrevivência, ensinar-lhe a linguagem, os gritos de alerta e perpetuar os sons musicais que facilitam os encontros, as reuniões, a convivência.
Caturritas, araras, tucanos, cancãs, sabiás, como tantos outros, têm seus pontos de encontro, marcam territórios, viajam em grupo, migram e retornam às mesmas árvores.

Toda essa vida manifestada pelas plantas e pelos bichos compõe a biodiversidade e o equilíbrio da floresta, mas passa despercebida da grande maioria da espécie humana. A atitude cultural da espécie humana é apropriar-se das riquezas materiais e usufruir de todos os bens a seu alcance como se a natureza fosse apenas um supermercado gratuito à sua disposição.
(Capítulo do livro, em preparação, sobre a regeneraçào vegetal)

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