domingo, 22 de março de 2015

BIODIVERSIDADE



BIODIVERSIDADE DO CERRADO


Eugênio Giovenardi
Ecossociólogo

"Chegará o dia em que os homens conhecerão o íntimo dos animais e, nesse dia, um crime contra qualquer um deles será considerado um crime contra a humanidade". (Leonardo da Vinci)


A biodiversidade constitui-se de milhões de vidas vivendo ao mesmo tempo no mesmo espaço de um bioma. Todas essas vidas dependem umas das outras numa complexa relação de convivência. Trata-se, portanto, de um fenômeno natural que obedece a leis biológicas e regulam a reprodução e a evolução de bilhões de espécies.
A biodiversidade expressa não só um gigantesco acúmulo de riquezas naturais, que sustentam todas as formas de vida, como também de valores que orientam a convivência dos seres numa universal biocomunidade.
Nesse sistema de interdependência, há um equilíbrio implícito. Um processo regulado de predação preserva a múltipla oferta de alimentos e favorece a reprodução de vidas que mutuamente se alimentam. Vidas se alimentam de vidas. A delicada Philocoxía minensis mantém suas minúsculas folhas grudentas enterradas na areia, onde captura e digere vermes subterrâneos, segundo o biólogo Caio Pereira (Pesquisa FAPESP no 194). O arbusto carnívoro Drosera capta e digere moscas como prato forte, segundo observação do botânico Rafael Oliveira, da Universidade Estadual de Campinas.
A cadeia trófica pode ser perturbada por fenômenos naturais ou pelo aparecimento de predadores vorazes, como vírus e bactérias ou espécies maiores capazes de se organizar e cooperar para buscar seu alimento. Desmond Morris (O macaco nu, Record, 1967) classificou os predadores em especialistas e oportunistas. O especialista tamanduá se contenta com formigas. O onívoro e edaz homo sapiens parece não ter limites na escolha oportunista de suas iguarias.
É fora de dúvida que, desde a presença confirmada da espécie homo sapiens, há 200 mil anos, o equilíbrio da interdependência dos seres vivos vem sofrendo tremendos revezes. A passagem do regime alimentar herbívoro para carnívoro resultou na redução gradativa de inúmeras espécies nativas ou de sua extinção pela caça.
O predador homo sapiens consumiu para sua sobrevivência e reprodução, uma infinidade de vidas modificando a genética de algumas espécies. Intervenções para aumentar sua capacidade predatória se intensificam com o apoio científico da tecnologia. Consegue, por isso, grandes estoques de alimentos que lhe permitem procriar-se livremente, organizar-se e expandir-se ocupando todos os quadrantes do planeta.
A biodiversidade, que durante um largo período de milênios foi reduzida pela caça e estimulada pelo crescimento da população, enfrenta, atualmente, desafiadores adversários para se sustentar. O desmatamento, o fogo, o lixo, a expansão urbana, a produção de alimentos em grande escala e a geração de energia elétrica ocasionaram ora o desvio ou alteração de cursos de água, ora a extinção de nascentes, rios e lagos. Não só caçamos, não só devastamos os múltiplos habitats dos biomas, não só eliminamos o alimento de muitas espécies, como também extinguimos os abrigos seculares da reprodução, envenenamos as águas e as florestas, e reduzimos nosso próprio espaço de sobrevivência.
Há fenômenos naturais, como erupção de vulcões, tempestades de raios, vendavais e tornados que podem reduzir temporariamente a biodiversidade. No entanto, é visível a destruição de florestas tropicais praticada pela espécie humana ao longo de milênios, com a domesticação de animais em larga escala (bovinocultura) ou a seleção artificial de espécies (soja, arroz, cana de açúcar). A degradação da biodiversidade também se faz pela proteção de alguns seres vivos em detrimento de outros por razões econômicas.

POPULAÇAO E BIODIVERSIDADE


A taxa de crescimento anual da população brasileira equivale ao tamanho de Brasília (2,8 milhões de habitantes). Onde quer esteja, essa população ocupa espaço físico, consome água, alimentos, escolas, precisa de hospitais, rodovias, transporte, trabalho e lazer. Para o tamanho do país, aparentemente parece fácil absorver os novos habitantes, ante as ineficientes estruturas administrativas.
O DF registra, em média, 120 nascimentos diários somando, anualmente, cerca de 40 mil novos habitantes, equivalente ao tamanho do Núcleo Bandeirante. Os reflexos desse crescimento populacional são percebidos no trânsito caótico, na expansão urbana sobre novas áreas verdes e na redução dos espaços onde a biodiversidade ainda resiste.
O crescimento das cidades tem se intensificado nos últimos anos. Com ele, inverteu-se a ordem da organização social e política. Grande parte das migrações também inverteram os motivos de mobilização. Se antes o móvel era a busca de novas terras e águas para se estabelecerem, há algumas décadas, as migrações inter-regionais no Brasil são atraídas pelas facilidades e outros confortos da vida urbana.

CERRADO E BIODIVERSIDADE


É oportuno recorrer a informações científicas de órgãos nacionais e internacionais sobre a extensão e a importância do Cerrado e sua relação com a biodiversidade. Estudos e pesquisas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), da ONG Conservation International, da WWF, do Ministério do Meio Ambiente atribuem à área do Cerrado brasileiro uma extensão aproximada de 2 milhões de km2 (200 milhões de hectares). Abrange um quinto do território nacional e avança sobre uma dezena de estados brasileiros, incluindo o Distrito Federal.
A flora, exótica e pródiga, se expressa em 11 mil espécies de plantas nativas, das quais 220 são de uso medicinal. Mais de 10 tipos de frutos comestíveis são regularmente consumidos e fontes de renda para agricultores, entre eles a mangaba, o pequi, o bacupari, o mirtilo, a cagaita, o jatobá, o cajá.
A fauna, especialmente, o lobo Guará, distintivo do Distrito Federal, é um entre as 199 espécies de mamíferos, além de 837 espécies de aves, 1.200 peixes, 330 de répteis e anfíbios conhecidos. Abriga 13% de borboletas, 35% das abelhas, 23% dos cupins dos trópicos e milhões de insetos, conforme dados da WWF, Ibram e Ibama.
Trabalho publicado na revista Nature, em 1997 (Constanza e colaboradores), indica que nas últimas décadas observou-se uma contínua diminuição da biodiversidade. Alguns biólogos, em razão da expansão urbana e abertura de novas áreas agrícolas, mencionam o risco de uma eliminação em massa tanto de espécies vegetais quanto animais. Cerca de um décimo dessas  espécies estão sob ameaça de extinção decorrente de atividades humanas pela destruição de seus  habitats.
A transformação dos ecossistemas originais por ecossistemas padronizados de monoculturas requer efetiva regulação de órgãos de fiscalização e controle. A Eco-92, promovida pela ONU, no Rio de Janeiro, foi um ponto de partida para a tomada de consciência ambiental da comunidade e de proteção da biodiversidade.

CERRADO E DESMATAMENTO


A ocupação do Cerrado ocorreu em diferentes momentos e com velocidade acelerada. E uma das principais causas de desmatamento do Cerrado, segundo o biólogo Bráulio Dias, é a abertura de áreas de pastagens para criação de gado de corte. Nas duas últimas décadas, os campos de soja substituíram definitivamente a floresta milenar e a múltipla variedade de gramíneas. Para o professor. Altair Sales Barbosa, da Universidade Católica de Goiás, “onde houve modificação do solo, a vegetação do Cerrado não brota mais. O solo do Cerrado é oligotrófico, carente de nutrientes básicos. Quando o agricultor e o pecuarista enriquecem esse solo, melhorando sua qualidade, isso é bom para outros tipos de planta, mas não para as do Cerrado. Por causa disso, não há mais como recuperar o ambiente original, em termos de vegetação e de solo”.
Ao substituir a vegetação do cerrado por outras culturas, altera-se o ambiente. O sistema radicular de culturas como soja ou milho é extremamente superficial e pouco eficiente para a recarga dos aquíferos comparando-se com a profundidade das raízes das plantas do Cerrado. Com o passar dos tempos, o volume armazenado dos lençóis freáticos diminui e o nível dos aquíferos é afetado.
Os últimos informes científicos do INPE e do Monitoramento dos Biomas Brasileiros, 2008-2012, indicam que o Cerrado havia perdido 48% de suas florestas e apenas 10% se mantêm como áreas protegidas. A extensão desmatada varia de 8.172 km2, em 2003, para 7.653 km2 (765.000 ha), em 2012. A média anual estimada de desmatamento é superior a 7.000 km2, equivalente a uma vez e meia a área do DF.

(gráfico) Evolução do desmatamento/DF - série 2003-2012
Km2: 8.172  8.906  4.822  3.506  4.447  3.757  2.997  3.724  7.416  7.653

Anos: 2003   2004   2005   2006   2007   2008   2009   2010   2011   2012
Fonte INPE

Contudo as informações sobre o desmatamento no DF são imprecisas. Sequer existem dados disponíveis e consolidados sobre as áreas desmatadas para a produção de cereais, para a agricultura familiar, horticultura, avicultura, bovinocultura e seu impacto sobre a biodiversidade. A observação empírica e o processo de ocupação contínua pela expansão urbana indicam claramente que, excetuando-se o Parque Nacional, o Parque da Cidade, parte do Jardim Botânico e outros 70 pequenos parques, as áreas do DF estão abertas à ocupação e ao parcelamento cujo controle parece estar fora do alcance da administração pública.
A disponibilidade de espaço físico que, em 1960, era de 40 mil metros quadrados por habitante, reduziu-se, em 2014 para 2 mil metros quadrados. Contabiliza, na expansão urbana, mais de 500 condomínios irregulares, 850 hectares do Noroeste, 17 mil hectares da DF-140 para 900 mil pessoas, além da área recém-divulgada para mais 90 mil habitantes na Samambaia. Somam-se a isso, o transbordamento contínuo da Ceilândia, do Gama, do Recanto das Emas, do Itapoã e o povoamento acelerado das margens das rodovias federais e distritais que atravessam o DF. São variadas formas de desmatamento sutil aliadas às queimadas anuais que atingem a biodiversidade destruindo florestas, soterrando nascentes de água, expulsando animais.
Um incêndio florestal no Cerrado mata, em poucas horas, milhões de vidas, eliminando dezenas de espécies de insetos, como aranhas, grilos, gafanhotos, moscas, abelhas e similares. Carbonizam-se cobras, lagartos, lagartixas e pequenos animais,  destroem-se ninhos de pássaros. Desnuda-se o solo e desfolham-se as árvores prejudicando a captação de águas da chuva e a infiltração para recarga dos aquíferos. Acentuam-se a erosão e o assoreamento de córregos e rios. O processo de esterilização em curso faz parte da progressiva extinção do cerrado. Cunhou-se uma expressão repetida frequentemente na imprensa: a cidade cresce e o Cerrado desaparece.
Além da redução da biodiversidade, os efeitos das queimadas são ainda mais graves. O engenheiro florestal, Tasso Azevedo, ex-diretor do Serviço Florestal Brasileiro, fez um cálculo sobre o desmatamento. Segundo sua análise, em 2012, foram emitidos 166 milhões de toneladas de gases de efeito estufa. E acrescentou: "Se o Cerrado fosse um país, estaria entre os 50 que mais poluem".
A devastação do cerrado pelo desmatamento se faz duplamente, na superfície e no subsolo. Na superfície, pela retirada do verde que absorve o gás carbônico, capta águas da chuva e irriga o ar. No subsolo pela erradicação das plantas e das gramíneas cujas raízes profundas canalizavam águas para a recarga dos aquíferos. Em outras palavras, o deserto substitui a biodiversidade. Para isto é preciso preservar a vegetação do Cerrado que entende de água há milhões de anos.
Vale lembrar que os rios São Francisco e Paraguai nascem no Cerrado. A Hidrelétrica de Itaipu não existiria sem as nascentes do Cerrado. Da Lagoa Bonita, na Estação Ecológica de Águas Emendadas, no Distrito Federal, a água vai se juntar a pequenos córregos para formar o Rio Paraná. Oito bacias hidrográficas entre as 12 mais importantes do Brasil têm suas nascentes no Cerrado. A devastação vegetal é o começo da desertificação. "O solo seca, a capacidade de armazenar água diminui e a quantidade de água disponível tanto para a região do cerrado quanto para o restante do Brasil vai diminuir", completa Jorge Werneck Lima. Das 300 cabeceiras de córregos e rios do DF cadastradas pelo Instituto Brasília Ambiental (Ibram), apenas 162 são monitoradas. Destas, só 47 estão protegidas por cobertura vegetal e 51 sofrem graves ameaças ambientais, com o desmatamento, o lixo e o esgoto.
O Ibram estima que existam mais de mil nascentes espalhadas pelo DF, mas não sabe sequer a localização de 700 delas. Apenas 300 constam no cadastro do Instituto e só 162 são constantemente monitoradas porque participam do programa Adote uma nascente. Mesmo entre as adotadas, há aquelas em situação precária.

BIODIVERSIDADE E ÉTICA AMBIENTAL


Todas as espécies têm um valor intrínseco, pois representam a vida de forma peculiar. A vida de qualquer ser origina atitude e comportamento ético, de respeito à sua existência como parte de um conjunto. O filósofo australiano John Passmore (1914-2004) tratou o tema da ética ambiental em seu pioneiro livro Man’s Responsibility for Nature (Duckworth, Londres, 1974). Todas as formas de vida estão ligadas por um fio existencial tecido pela natureza. Esse fio existencial é contínuo. Uma vida se comunica com outras vidas, depende de outras vidas, alimenta outras vidas.
A ética ambiental regula a distribuição da riqueza natural representada pela vida entre todas as espécies vivas. Diante disso, como propor soluções para nossos problemas ambientais mais urgentes, como poluição, conservação da riqueza natural, preservação de áreas relativamente intocadas, produção de alimentos, queima de combustível fóssil e superpopulação? O planejamento familiar para o controle demográfico é ainda um tabu. A solução parece estar na convivência respeitosa com todas as formas de vida, sem entusiasmo cego pela natureza nem liberalismo antropocêntrico irresponsável que a submeta aos caprichos humanos. A espécie humana está despertando para essa solução orientada pelo princípio da precaução, mas o caminho é longo e tortuoso. Não há dúvida: quanto maior for a biodiversidade, mais fácil será a interdependência de todos os seres vivos.
É importante notar que, no uso da riqueza armazenada na biodiversidade, cada espécie viva tem sua função no ecossistema. O papel dos predadores, a espécie humana incluída, é regular a reprodução de presas e garantir o equilíbrio ambiental para que todas as vidas cumpram sua função. Observa-se, no comportamento de quase todas as espécies, o uso direto e imediato de bens necessários à sobrevivência e à reprodução e, ao mesmo tempo, o armazenamento de comida para dias futuros. A disseminação de sementes pelos pássaros, o enterro de ossos por cães e lobos, ou toneladas de carne em frigoríficos são comportamentos que revelam preocupação pela sobrevivência.
A conservação da diversidade biológica tornou-se uma inquietação global. Ações continuadas e mais eficazes para garantir a conservação da diversidade biológica ainda esperam por políticas públicas e investimentos mais generosos.
Esta atenção global da qual o Brasil participa precisa ser adotada na prática de forma coordenada pelo governo em suas três instâncias – federal, estadual e municipal -, pelo setor empresarial e pelas organizações sociais em defesa da vida.
Dentre as principais sugestões e ações emergenciais constantes de documentos oficiais e de organizações ambientalistas não governamentais nacionais e internacionais mencionam-se o desmatamento zero do Cerrado com vistas ao planejamento integrado para ocupação do bioma. Recomenda-se o apoio intensivo técnico e financeiro aos programas de recuperação de áreas degradadas de iniciativa governamental ou de associações da cidadania. A restauração de áreas degradadas ou arborização intensa de margens de rodovias ou corredores vegetais poderia ser conseguida em poucos anos com a geração de empregos verdes por trabalhadores treinados para o cumprimento dessa atividade.
Em resumo, a biodiversidade é a garantia da interdependência de todos os seres vivos, de sua sobrevivência e reprodução. A destruição de um bioma acarreta uma perda em cascata de outros biomas que compõem um integrado sistema do planeta no qual as vidas estão conectadas. A espécie humana não é a única no planeta, nem a mais numerosa. Pelas leis providenciais da evolução, a espécie humana apareceu num momento em que poderia se reproduzir e se consolidar. A atitude mais prudente é preservar os estoques desse imenso armazém da biodiversidade disponível a todos os seres que dela participam.
Como será o planeta Terra se viver nele uma única espécie de predadores denominado homo sapiens? Continuará ser predadora, e sabemos, já hoje, quem serão as presas.
É melhor para a espécie humana, e para todas as espécies vivas, preservar a biodiversidade e aceitar humildemente que ela é apenas um habitante da biocomunidade.


Brasília, 22 de março de 2012
Dia Mundial da Água

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