sexta-feira, 10 de outubro de 2014

LEVARAM MEU CELULAR



Nasci num lugarejo e num tempo em que não havia ladrões. As portas das casas não tinham chaves. Lembro-me de uma tramela frouxa na porta da cozinha que nem sempre se mantinha na posição projetada. As roupas, à noite, permaneciam no varal. Sapatos, botas e chinelos descansavam na soleira da porta.
As galinhas ciscavam livremente. Dormiam no galinheiro aberto e ali botavam e chocavam seus ovos. O galinheiro foi, desde tempos imemoriais, a tentação do inofensivo ladrão de galinhas, denunciado por elas em ruidosos protestos em plena noite de sábado.
Dandão costumava convidar amigos ao risoto do domingo para o jogo do quatrilho regado a vinho bordô da cantina Milani. Dandão só deixou o sagrado hábito do risoto quando o dono do galinheiro armou uma arapuca que lhe prendeu a perna. Vociferou de dor e vomitou meia dúzia de blasfêmias impublicáveis em coro com o desespero de galos, galinhas e pintinhos perdidos.
Hoje, são raros os ladrões de galinhas. O que mais se ouve é: levaram meu celular, roubaram meu carro, assaltaram os caixas eletrônicos do Banco do Brasil, sequestraram o casal, saquearam a joalheria do Conjunto Nacional.
A modalidade mais eficaz de roubo (também dito desvio de dinheiro público) sem violência nem derramamento de sangue é a que o senhor Costa, premiado por ter feito um afano espetacular, revelou aos juízes e delegados do Paraná. A fórmula é simples: o governo arrecada parte do dinheiro dos cidadãos (confisco legal imposto) sobre salários, produtos, vendas, compras, serviços, investimentos, empréstimos com o fim de construir o orçamento. Com esse dinheiro, o administrador da república contrata empresas privadas para executar uma obra qualquer (exploração de poços de petróleo, construção de metrô, transposição do Rio São Francisco etc...). Prepostos do governo negociam com as empresas contratadas o retorno de um percentual do valor contratado a um caixa provisório para garantir novos contratos.
Uma parte do dinheiro do governo é devolvida ao governo pelas empresas por meio desses prepostos. Eles guardam o que lhes cabe em suas contas na Suíça. Outros milhões rumam para os facilitadores da burocracia e para os partidos políticos se manterem no comando da administração da coisa pública. Há tempos, os valores eram baixos e o percentual, alto. Hoje, os valores são bilionários e 1% pode significar milhões de reais.
Como o Estado tem arapucas independentes do governo, previstas na Constituição (tribunais, polícias), os cozinheiros do risoto financeiro são presos pelas pernas bambas da contabilidade, pela ostentação do patrimônio pessoal e familiar, pelos jatinhos que voam de flor em flor, pelos automóveis de luxo dez vezes mais valiosos do que uma casa popular na periferia longínqua, pelas mansões faraônicas no país e no exterior.
Uma ínfima parte das contribuições de todos os cidadãos se destina a programas sociais (renda, educação, saúde) para contrabalançar a gangorra da desigualdade sem prejudicar as fortunas de empresas bilionárias. Uma farsa consentida.

Sofisticou-se o ladrão de galinhas. Aperfeiçoaram-se as arapucas. As quadrilhas não tem mais risoto para seu quatrilho dominical.

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