domingo, 12 de outubro de 2014

DA MORTE À VIDA


Sou neto de imigrantes do norte da Itália. Enfrentaram o Atlântico. Três semanas a bordo de um navio. Subiram a Serra Gaúcha. Aculturaram-se numa terra bravia. Misturaram seu idioma à esquiva língua de açorianos.
Tudo estava por fazer a seu redor. Eles o fizeram. Povoaram as casas, as roças, os vinhedos, os vales, as montanhas, as cidades.
As madrugadas os encontravam na lide que se interrompia ao cair do sol.
Mulheres grávidas, filhos no colo, crianças depois da escola, homens jovens e velhos estavam no trabalho enquanto houvesse luz.
Às quatro horas da manhã, meu pai me despertava. Tinha eu oito anos. O boi já estava na mangueira para o sacrifício. Levávamos o animal ao cepo do matadouro. Eu segurava firme o laço. Meu pai acertava a jugular do boi. O sangue jorrava e escorria pelo chão. O animal bufava. Virava os olhos. Caia.
Vi a morte quase todas as manhãs. Era a luta pela sobrevivência. A vida dependia da morte.
Amanhecia. O sol iluminava a floresta. Eu andava dois quilômetros ao lado de colegas até a escola primária. Fui o único dos nove filhos de dona Agnese a entrar para a universidade. Nela aprendi que a morte precede a vida. E a vida é um tempo dado para ser feliz.
Por isso escrevo. Para não esquecer que, mesmo sem governos paternais, pode-se ganhar a cidadania e prestar serviços à sociedade das pessoas. Olho para o ribeirão que leva as águas ao mar. Percebo-me uma gota a encher o oceano.
Hoje, precisa-se de bolsas e de cotas para construir uma nação temerariamente desigual. E o ribeirão é feito de gotas solidárias que correm para encher o mar.


12.10.2014

Nenhum comentário: