(Foto: Brasília, 2014)
O fascínio humano
pela velocidade faz supor que a espécie homo
sapiens guarda nos genes a nostalgia de, um dia perdido na história milenar
da evolução, ter voado. As asas de Ícaro se desprenderam ao se aproximar do
Sol. “Subi além do Olimpo, além dos cimos, que Pégaso alcançou com seu voo”,
diz Milton (O Paraíso Perdido, VII Livro). Belerofonte tentou voar até o céu em
seu corcel alado. O cavalo, picado por um moscardo enviado por Júpiter, atirou
ao chão o cavaleiro. O homem sonhava em aumentar a velocidade do cavalo.
A luta contra o tempo desafiante faz o
homem correr e voar. Produzir mais em menos tempo. A loucura da produtividade.
Com insistência,
noticiários, administradores públicos e especialistas mostram que nossas
cidades estão chegando ao caos do trânsito. O automóvel, inventado para ganhar
tempo, está corcoveando pelas vias e derrubando seus cavaleiros. Um milhão e
quinhentos mil carros multiplicados por seis metros quadrados de ferro, vidro e
plástico reviraram nossa cidade.
Eles impuseram ao
homem a obrigação de alargar ruas, abrir avenidas, vias expressas, viadutos e
estacionamentos. Milhares de sinais de trânsito, das placas aos semáforos, do policiamento
aos controles eletrônicos, insaciáveis, querem sempre mais. Brasília se encheu de
gente e se entupiu de carros. A capital da República está diante de salomônica alternativa:
diminuir a população ou reduzir o número de carros. Quem se atreve a escolher?
As duas pernas do
pedestre vão tomando a característica de enfeite orgânico substituídas pelas
quatro rodas do pégaso moderno. A cidade de Brasília está desenhada para o
automóvel. Todos os pontos da cidade ficam perto do automóvel e longe do
pedestre. Este, a meu juízo, é o ponto essencial que dificulta a mobilidade do
cidadão brasiliense.
Como chegar
saudavelmente ao ponto distante do pedestre tomando um automotor adequado para
fazê-lo no menor tempo possível? Diante do fracasso das iniciativas para lograr
esse alvo, anuncia-se que, daqui a seis anos, o protótipo da velocidade urbana
congestionará e paralisará o trânsito em Brasília.
Fala-se, há uma
década, de caos urbano como se fosse um personagem vivo. Há expressões que se
repetem com frequência, mas seus efeitos não acontecem com a mesma velocidade
que os carros enchem as ruas. Eis algumas:
“Falta
planejamento urbano e uma política de trânsito e transportes para a capital.”
“Falta
gestão de trânsito por parte do Departamento de Trânsito (Detran).”
“A
presença de mais fiscais de trânsito poderia aliviar a sensação de caos no
centro da cidade.”
“O
governo terá de adotar medidas de restrição ao uso do automóvel.”
“Nós
precisamos melhorar a gestão do sistema (!). Criar políticas de incentivo ao
uso compartilhado do veículo particular e coletivo.”
“O
problema principal é a própria configuração da cidade, com núcleos urbanos
afastados do centro de atividades básicas.”
Diante desses
pronunciamentos inócuos, a resposta da população é queimar ônibus, obstruir
vias, impedir a circulação e parar o funcionamento da cidade.
O deslocamento de 2,6
milhões de cidadãos brasilienses esparramados sobre 5.822 km2 se
faz, preferencialmente, pela superfície urbana. Este é o primeiro complicador,
o primeiro nó a ser desfeito. A superfície de Brasília tem limites. O subsolo,
tão bem usado em Paris, Londres, Nova Iorque, São Petersburgo, Quebec e dezenas
de outras grandes cidades, ainda não foi convenientemente trabalhado em
Brasília.
A preferência dos
administradores públicos se dirige a usar mais intensamente a superfície urbana
com modos coletivos de transporte, linhas de ônibus convencionais, uma linha de
metrô rudimentar e o debutante BRT (Bus Rapid Transit). As vias expressas do BRT
causam um impacto ambiental doloroso e requerem construções gigantescas cujo
custo/benefício econômico e ecológico ainda está para ser justificado. Importante
questão ecológica deveria ser respondida por especialistas de diferentes
disciplinas sobre o número e uso do carro particuar: qual é o limite de emissão
de gases de efeito estufa tolerável capaz de manter o ambiente saudável para
todas as formas interdependentes de vida no espaço urbano?
Além dessa resposta,
qual é o espaço físico adequado em metros quadrados para determinar inteligentemente
a densidade populacional de uma área habitável com as características do bioma
cerrado? No Distrito Federal, o espaço físico por habitante decresceu de 41.000
m2, em 1960, para 2.220 m2, em 2013.
O superpovoamento da
cidade provocou perda de grande parte da vegetação nativa, soterramento e
extinção de mananciais, desaparecimento de cursos d’água, redução de áreas de
recarga de aquíferos, impermeabilização de vastas extensões sem estudos
ecológicos.
Uma característica de
Brasília é que os principais pontos de destino e de interesse da população,
pelo projeto urbanístico da cidade – local de trabalho e serviços públicos –
foram localizados longe do cidadão sem prever os meios e os modos integrados de
transporte para alcançá-los.
A capital como centro de decisões
políticas do país centralizou também os pontos de maior interesse da população que
se acomodou, ao longo dos anos, em áreas distantes.
Sem uma revisão
drástica do funcionamento da máquina urbana de Brasília, as profecias apontam
para uma queda espetacular do cavaleiro que não conseguirá refrear os corcovos
de seu pégaso voador sobre quatro rodas.
Há evidências de que
os requerimentos dessa revisão estão muito acima da capacidade dos
administradores públicos que se revezam nos cargos sem a devida preparação
política e conhecimento técnico da gestão urbana.
(Leia o ÚLTIMO PEDESTRE, Kiron editora, 2013)
O fascínio humano pela velocidade faz supor que a espécie homo sapiens guarda nos genes a nostalgia de, um dia perdido na história milenar da evolução, ter voado. As asas de Ícaro se desprenderam ao se aproximar do Sol. “Subi além do Olimpo, além dos cimos, que Pégaso alcançou com seu voo”, diz Milton (O Paraíso Perdido, VII Livro). Belerofonte tentou voar até o céu em seu corcel alado. O cavalo, picado por um moscardo enviado por Júpiter, atirou ao chão o cavaleiro. O homem sonhava em aumentar a velocidade do cavalo.
Diante desses pronunciamentos inócuos, a resposta da população é queimar ônibus, obstruir vias, impedir a circulação e parar o funcionamento da cidade.
Sem uma revisão drástica do funcionamento da máquina urbana de Brasília, as profecias apontam para uma queda espetacular do cavaleiro que não conseguirá refrear os corcovos de seu pégaso voador sobre quatro rodas.
(Leia o ÚLTIMO PEDESTRE, Kiron editora, 2013)
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