As propostas, as discussões e a prática sobre a
preservação da ideia essencial do Projeto do Dr. Lúcio Costa para a construção
da nova capital dividem as opiniões de especialistas confrontadas com as dos
administradores da cidade de Brasília que se esparrama por 5.822 km2.
O Dr. Lúcio Costa, ao traçar as linhas do Plano Piloto,
provavelmente descurou de como esse projeto sustentaria a ideia genial nele
contida. Até onde vai a responsabilidade do eminente arquiteto?
O conceito de país continental deve ter influenciado
os traços do desenho monumental das obras de Oscar Niemayer. Acostumados ao
pequeno e ao pobre, a imensidão dos espaços bucólicos que dão o caráter de
grandiosidade do Plano Piloto soa, aos ouvidos da burocracia apática, dominada
por interesses privados, como um desperdício a ser evitado.
Espaço livre, liberto da ação individualista do
cidadão não é o mesmo que espaço desocupado ou degradado. Estranhamente, os
administradores da cidade ignoram o sentido de bucólico e são atraídos por
espaços desocupados. Ignoram o sentido de espaço livre e liberto no conjunto
urbanístico. Trata-se de zonas liberadas que representam a ação grandiosa da
natureza para dar solidez à relação do cidadão com todos os demais seres vivos
vegetais e animais que integram o mesmo espaço.
As distintas instâncias do concurso que aprovaram a
grandiosidade simples do projeto do Dr. Lúcio Costa talvez tenham dado pouca
atenção ao advérbio modal para a preservação futura da ideia expressa no
desenho arquitetônico. Como se sustentaria a magnificência do projeto da nova
capital e por quem?
Para onde e para quem se dirige o como? Por que, de
tempos em tempos, surgem propostas para adaptar a preservação do conjunto
urbanístico de Brasília reconhecido como Patrimônio Mundial pela Organização
das Nações Unidas para a Educação e a Cultura? Por que esse reconhecimento
mundial não é suficiente para garantir a preservação das características
principais da capital?
O PPCUB está propondo um como amplo, geral e
irrestrito. Está sendo proposto por oficiais de gabinete, unindo burocracia,
política e interesses econômicos privados. É uma iniciativa capciosa e ardilosa
acenando para a “melhoria da qualidade de vida dos brasilienses”. Essa
afirmação do porta-voz da Seduma faz supor que “ocupar a orla do Lago e
democratizar o espaço” melhora a qualidade de vida dos moradores de Samambaia,
da Estrutural e do Sol Nascente.
Brasília, e especialmente o Plano Piloto, está
virtualmente entregue a competentes arquitetos. Conheço mais de uma dezena de
profissionais experientes que manifestaram suas opiniões e críticas em artigos,
blogs e várias coleções de estudos e análises contidos em livros. São raros os
artigos escritos por arquitetos e geógrafos em que uma das afirmações
contundentes não seja a ausência de planejamento urbano em Brasília. Mas como? Quem
é responsável pelo planejamento urbano? E, quando se fala em urbanismo,
qualquer voz que não seja de arquiteto tem pouca chance de ser levada em
consideração.
Quem mais poderia ser ouvido de forma ampla, geral e
irrestrita além dos professores de faculdades de arquitetura, arquitetos do
Iphan, do IAB, do IHG/DF, do Grupo de Urbanistas por Brasília no sentido de
fazer valer a promessa de melhoria da qualidade de vida dos brasilienses sem
descaracterizar as ideias básicas do projeto do Dr. Lúcio Costa?
Perguntei, hoje, à minha diarista, que enfrenta seis
horas de ônibus, dos confins de Valparaíso ao Plano Piloto, para chegar ao
trabalho e voltar a casa, se estava a par ou se ouvira mencionar PPCUB, PURP,
AE, AP, UP, PDOT, LUOS. Não sei! – disse. E ninguém mais do que ela, suponho,
está interessada na “melhoria da qualidade de vida”.
Um dos quesitos essenciais, se não o essencial, é a
água que garante o verde que acumula água. Nas 118 páginas e nas 795 folhas,
contendo 72 planilhas, nas quais se propõem intervenções cruciais, salvo distração
de minha parte, ignora-se o quesito água.
Na prática, em todos os projetos urbanísticos mais
recentes, desde Samambaia, Sudoeste, Noroeste e da orla do Lago, o item água
foi ignorado na origem e acenado como característica distintiva e ecológica por
meio de captação de parte de águas da chuva para uso público. Lembro que os
recentes projetos de uso do solo em áreas degradadas, dentro de Paris – La
Villette e Georges Bressans (Vaugirard) – tiveram como ponto de partida, e
merecendo menção especial, a preservação e o tratamento de nascentes de água
nessas áreas.
Os córregos que cortam ou cortavam o DF e as centenas
de nascentes extintas são uma claríssima indicação de que os projetos
urbanísticos ignoram o elemento água essencial para a sobrevivência humana. Ao
impermeabilizar uma área significa impedir a infiltração de água no solo e a recarga
dos aquíferos, implica em diminuir a umidade, reduzir a biodiversidade e degradar
a saúde. Na precipitação anual média de 1.250mm, no DF, cada módulo impermeabilizado
de 100m2 impede a infiltração de 125 mil litros de água (125m3).
Calcule-se, então, a área impermeabilizada dos 112 milhões de metros quadrados que
correspondem à área tombada pela Unesco e se compreenderá a extensão do desastre
ecológico. As inundações, em qualquer canto de Brasília, são indicativas do descaso
se não da ignorância do volume de águas da chuva e de sistemas de captação em grande
escala para uso coletivo.
Resta, então, o advérbio modal: como preservar o
conjunto urbanístico de Brasília? Só uma frente popular – cidadãos de Brasília – reunida na Esplanada,
no Eixo Monumental, na orla do Lago, na DF-140, no Sol Nascente, ampliando o
corajoso Grupo Urbanistas por Brasília, Movimentos Nossa Brasília, Movimento em Defesa de Brasília, SOS Parque
Olhos D'água poderá deter a ignorância administrativa e controlar o ímpeto, a
ambição e a auri sacra fames da indústria
imobiliária e dos apologistas do confuso sistema viário que conduz ao
precipício social.
Nota: Sou ecossociólogo, naturalista e escritor.
Administro uma área liberada da opressão industrial e da tirania do consumo
obsessivo, uma reserva natural de cerrado de 70 hectares (Sítio das Neves) para
refúgio de variada fauna de ar e terra, reprodução espontânea da flora nativa
(3.500 espécies), proteção de nascentes e recarga de aquíferos com captação de
águas pluviais. Estudo a ocupação do espaço e a organização de algumas espécies
da biocomunidade (mangabeiras, caliandras e catolé).
Um comentário:
Caro amigo Giovenardi,
Ao denunciar as armadilhas desse malfadado PPcub, você nos dá uma aula de Humanidades. Aliás, do seu texto emanam grandes lições de verdadeiro amor a Brasília, com vários ensinamentos de como preservar o monumento que Dr. Lúcio Costa um dia erigiu no Planalto Goiano. Monumento que os escravos da especulação imobiliária, devidamente apaniguados por falsos políticos, tentam CORROMPER e DESTRUIR, em nome da ganância e do desamor.
Parabéns, amigo, pela sempre lúcida visão de Brasília. Embora não apareçam muito, existem alguns bons companheiros nessa sua jornada. Por isso, lhe digo: você não está sozinho. Abraço fraterno. Taveira
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