Vida, no contexto dessa frase, é sinônimo abstrato de
tempo, tranquilidade, ansiedade, preocupação consciente e inconsciente,
aborrecimento, indignação ou felicidade. Há sempre alternativa. A vida é uma
medalha de duas faces e a probabilidade de uma alternativa é de meio a meio. A
vida é alternativa à morte. A alternativa está presente a cada passo. Da hora
de acordar à hora de deitar.
O transporte urbano, por ser caótico nas médias e grandes
cidades, ganhou categoria abstrata e sociológica – mobilidade. É um dos vilões
que consomem a vida do cidadão.
Distingue-se, nesse quesito, alternativa de opção.
Alternativa é ir ou não ir. A decisão depende de opções. Ir ao cinema na sessão
das 19 horas é uma decisão aalternativa que depende de distintas opções. Em Brasília, a hora
pico é inconveniente. Arrisca-se de ser prisioneiro do trânsito por tempo igual
ao da duração do filme. E para certos cinemas, por sua localização, a opção do
transporte não é determinante. Nem o ônibus, nem o metrô, nem o carro
individual são capazes de dar a este pedaço de tempo e vida o prazer que
antecede o filme em perspectiva. O tempo gasto no trânsito equivale ao consumo
de vida.
A diarista que precisa vencer vinte e cinco quilômetros para chegar ao
local de trabalho, premida pelas contas a pagar segundo suas opções de consumo,
sente-se constrangida a ir. Não se dá a liberdade de não ir. Das 24 horas de
vida, gastará seis divididas entre o trajeto da casa à parada de ônibus e ao
ponto de chegada de volta ao lar, ao final do dia. Mais da metade da vida desse
dia será gasta no trânsito e no trabalho que ela justifica pela remuneração
satisfatória em razão das contas a pagar: prestação da casa, condomínio, energia,
água, alimento, vestuário, diversos impostos diretos (IPTU/SLU), TV, celular,
remédios controlados, transporte, taxa escolar, supermercado, reparos da casa,
etc...
Diaristas e milhões de trabalhadores gastam a vida – o
tempo – como colaboradores inconscientes do crescimento econômico impulsionado
pelo consumo. O trabalho, nessas condições, alimenta o consumo que sustenta o
crescimento econômico apurado pelo PIB. O PIB só não mostra o gasto da vida do
trabalhador.
Conclusão desanimadora: gasta-se a vida para sustentar
o lucro do crescimento econômico concentrado em poucas mãos.
ONDE A VIDA É GASTA II
Cada pessoa ou grupo de pessoas se acomodam a um
modelo que lhes é imposto pela convivência social. O que se vê e se ouve é
inconscientemente praticado. Raros são os que escolhem o modelo de vida. E não
há modelos puros. É imposto tal qual é vivido num tempo e por um grupo que nos
antecede.
A diarista, o proprietário do insubstituível
automóvel, o funcionário público, o empresário idealista, o escritor, todos
caíram na arapuca preparada há tempos. A diarista caiu na arapuca. Qualquer um
cai. E só percebe quando sair dela é quase impossível, ainda que a gripe, o
diabete, a hipertensão conspirem contra ela.
Poderia trabalhar em local próximo a sua casa sem o
desgaste do trânsito, com salário menor. Mas o modelo que adotou recusa
mudanças. Submete-se ao modelo e gasta a vida nele.
O sonho do automóvel zero quilômetro também é imposto.
O dono será dele vitima e escravo. Sua felicidade está no carro. Vive o carro
em vez de viver a vida. A utilidade do material justifica a queima de
combustível fóssil, a emissão de carbono e, principalmente, o lugar de destaque
no grupo. Sente-se vitorioso não por ter compreendido o universo de sua
existência, mas porque o carro o distingue e o aplaude.
Há uma reciprocidade entre o modelo e o usuário. Um
alimenta o outro. Um sustenta o outro. Mudar o modelo é mudar-se. E mudar-se
exige um ato de consciência diante da própria vida e a dos que nos cercam. Mudar-se
é o ponto alfa da revolução consciente para compreender o universo que habitamos.
16.3.2014
Nota: Sou ecossociólogo, naturalista e escritor.
Administro uma área liberada da opressão industrial e da tirania do consumo
obsessivo. Reserva natural de cerrado de 70 hectares (Sítio das Neves) para
refúgio de variada fauna de ar e terra, reprodução espontânea da flora nativa
(3.500 espécies), proteção de nascentes e recarga de aquíferos com captação e
retenção de águas pluviais. Estudo a ocupação do espaço e a organização de
algumas espécies da biocomunidade (mangabeiras, caliandras e catolé).
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