O discípulo se aproximou do
filosofo que lia um pequeno livro sentado à sombra de um angico. Buscava ajuda
do mestre para compreender o mundo que o rodeava. Via, ao mesmo tempo, num
grande tabuleiro, a utopia da igualdade, a escravidão da desigualdade, a
liberdade das diferenças, as distintas respostas da filosofia e a renhida luta
pelo poder no país em que vivia.
– Por que esta fome
insaciável, essa vontade irreprimida de conquistar o poder? – perguntou o
discípulo.
O filosofo fechou o livro,
pôs o dedo indicador direito entre as páginas, passou a mão direita sobre os
raros cabelos já encanecidos.
– A fome, caro jovem, é o
primeiro, o mais importante e permanente artifício do organismo para se manter
vivo e se reproduzir. Se este truque natural falhar, toda a esperança de vida
fracassa. Vamos considerar, neste país em que vivemos, três grupos de cidadãos
que desejam sobreviver e se reproduzir. Os famintos,
os que têm maior dificuldade de encontrar o alimento por falta de meios para
adquiri-lo, premidos pela fome, se lançam sobre o alimento onde quer que
esteja. Privados dessa oportunidade, durante muito tempo, percebem que, comendo
mais, assemelham-se aos que sempre se alimentaram. Passar da privação permanente
para o consumo garantido, não só sua reprodução e sobrevivência são facilitadas
como asseguram a continuidade das atividades dos que produzem alimentos. Os
produtores de alimentos precisam de consumidores para se manter na atividade. No
segundo grupo estão os que, há muito, não são famintos. Acostumaram-se a
escolher sua comida, seus temperos, seus pratos favoritos. Preparam-nos em
casa. Encomendam-nos ou vão a restaurantes. Depois da comida, depois da fome
saciada, garantida a sobrevivência e controlada a reprodução, buscam centenas
de outros bens de conforto. Dessa forma, fazem rodar e aperfeiçoar a produção
de novos bens. O terceiro grupo, em menor quantidade de pessoas, é o que
acumulou, durante séculos, os meios de produzir alimentos e bens. Para que esse
grupo subsista na organização da produção é preciso que os famintos e os
saciados assegurem o consumo de todo tipo de bens necessários e supérfluos.
– Mas, mestre, nada vi que se
explique a fome de poder.
– Na organização política,
suspirou o filosofo, os artifícios da alma do ser humano são semelhantes aos de
seu estômago. Os famintos, os que nunca estiveram perto do poder, se batem para
sobreviver e se reproduzir. Lançam-se sobre qualquer pedaço de oportunidade que
tenha sabor de poder sem medo da obesidade ética. A fome de quem nunca teve
poder é mais aguda e impulsiva. Quase nada os impede de avançar sobre ele. Vão
demolindo todas as cercas e barreiras para ocupar os lugares dos que se
saciaram do poder e sentem por ele certo enjoo e indiferença. Os saciados
preferem as sobremesas do poder. Os famintos, provando o sabor delicioso do
poder, aliam-se aos grandes maîtres
que detêm a receita do poder. O segredo dos novos donos do poder que precisam
dos que sempre estiveram com a mão no comando é manter-se faminto. O poder não
sacia a fome. O poder alimenta a utopia da igualdade, manipula com estatísticas
a escravidão das desigualdades, controla a liberdade das diferenças espalhando
favores a mancheias.
10.5.2013
Um comentário:
Alerta: "Qualquer semelhança com situações reais e atuais é mera coincidência..."
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