BIODIVERSIDADE DO CERRADO
Eugênio Giovenardi
Ecossociólogo
"Chegará o dia em que os homens conhecerão o íntimo dos animais e,
nesse dia, um crime contra qualquer um deles será considerado um crime contra a
humanidade".
(Leonardo da Vinci)
A biodiversidade constitui-se
de milhões de vidas vivendo ao mesmo tempo no mesmo espaço de um bioma. Todas
essas vidas dependem umas das outras numa complexa relação de convivência. Trata-se,
portanto, de um fenômeno natural que obedece a leis biológicas e regulam a
reprodução e a evolução de bilhões de espécies.
A
biodiversidade expressa não só um gigantesco acúmulo de riquezas naturais, que
sustentam todas as formas de vida, como também de valores que orientam a
convivência dos seres numa universal biocomunidade.
Nesse sistema de interdependência, há um equilíbrio
implícito. Um processo regulado de predação preserva a múltipla oferta de
alimentos e favorece a reprodução de vidas que mutuamente se alimentam. Vidas
se alimentam de vidas. A delicada Philocoxía
minensis mantém suas minúsculas folhas grudentas enterradas na areia, onde
captura e digere vermes subterrâneos, segundo o biólogo Caio Pereira (Pesquisa
FAPESP no 194). O arbusto carnívoro Drosera capta e digere moscas como prato forte, segundo observação
do botânico Rafael Oliveira, da Universidade Estadual de Campinas.
A cadeia trófica pode ser perturbada por fenômenos
naturais ou pelo aparecimento de predadores vorazes, como vírus e bactérias ou
espécies maiores capazes de se organizar e cooperar para buscar seu alimento. Desmond
Morris (O macaco nu, Record, 1967) classificou os predadores em especialistas e
oportunistas. O especialista tamanduá se contenta com formigas. O onívoro e edaz
homo sapiens parece não ter limites
na escolha oportunista de suas iguarias.
É fora de dúvida que, desde a presença confirmada da
espécie homo sapiens, há 200 mil
anos, o equilíbrio da interdependência dos seres vivos vem sofrendo tremendos
revezes. A passagem do regime alimentar herbívoro para carnívoro resultou na
redução gradativa de inúmeras espécies nativas ou de sua extinção pela caça.
O predador homo
sapiens consumiu para sua sobrevivência e reprodução, uma infinidade de
vidas modificando a genética de algumas espécies. Intervenções para aumentar
sua capacidade predatória se intensificam com o apoio científico da tecnologia.
Consegue, por isso, grandes estoques de alimentos que lhe permitem procriar-se
livremente, organizar-se e expandir-se ocupando todos os quadrantes do planeta.
A biodiversidade, que durante um largo período de
milênios foi reduzida pela caça e estimulada pelo crescimento da população,
enfrenta, atualmente, desafiadores adversários para se sustentar. O
desmatamento, o fogo, o lixo, a expansão urbana, a produção de alimentos em
grande escala e a geração de energia elétrica ocasionaram ora o desvio ou
alteração de cursos de água, ora a extinção de nascentes, rios e lagos. Não só
caçamos, não só devastamos os múltiplos habitats
dos biomas, não só eliminamos o alimento de muitas espécies, como também
extinguimos os abrigos seculares da reprodução, envenenamos as águas e as
florestas, e reduzimos nosso próprio espaço de sobrevivência.
Há fenômenos naturais, como erupção de
vulcões, tempestades de raios, vendavais e tornados que podem reduzir temporariamente
a biodiversidade. No entanto, é visível a destruição de florestas tropicais
praticada pela espécie humana ao longo de milênios, com a domesticação
de animais em larga escala
(bovinocultura) ou a seleção artificial de espécies (soja, arroz, cana de açúcar).
A degradação da biodiversidade também se faz pela proteção de alguns seres
vivos em detrimento de outros por razões econômicas.
POPULAÇAO E BIODIVERSIDADE
A taxa de crescimento anual da população brasileira equivale
ao tamanho de Brasília (2,8 milhões de habitantes). Onde quer esteja, essa
população ocupa espaço físico, consome água, alimentos, escolas, precisa de hospitais,
rodovias, transporte, trabalho e lazer. Para o tamanho do país, aparentemente
parece fácil absorver os novos habitantes, ante as ineficientes estruturas
administrativas.
O DF registra, em média, 120 nascimentos diários
somando, anualmente, cerca de 40 mil novos habitantes, equivalente ao tamanho
do Núcleo Bandeirante. Os reflexos desse crescimento populacional são
percebidos no trânsito caótico, na expansão urbana sobre novas áreas verdes e
na redução dos espaços onde a biodiversidade ainda resiste.
O crescimento das cidades tem se intensificado nos
últimos anos. Com ele, inverteu-se a ordem da organização social e política.
Grande parte das migrações também inverteram os motivos de mobilização. Se
antes o móvel era a busca de novas terras e águas para se estabelecerem, há
algumas décadas, as migrações inter-regionais no Brasil são atraídas pelas
facilidades e outros confortos da vida urbana.
CERRADO E BIODIVERSIDADE
É oportuno recorrer a informações científicas de
órgãos nacionais e internacionais sobre a extensão e a importância do Cerrado e
sua relação com a biodiversidade. Estudos e pesquisas do Instituto Nacional de
Pesquisas Espaciais (INPE), da ONG Conservation
International, da WWF, do Ministério do Meio Ambiente atribuem à área do
Cerrado brasileiro uma extensão aproximada de 2 milhões de km2 (200
milhões de hectares). Abrange um quinto do território nacional e avança sobre
uma dezena de estados brasileiros, incluindo o Distrito Federal.
A flora, exótica e pródiga, se expressa em 11 mil
espécies de plantas nativas, das quais 220 são de uso medicinal. Mais de 10
tipos de frutos comestíveis são regularmente consumidos e fontes de renda para
agricultores, entre eles a mangaba, o pequi, o bacupari, o mirtilo, a cagaita,
o jatobá, o cajá.
A
fauna, especialmente, o lobo Guará, distintivo do Distrito Federal, é um entre as 199 espécies de mamíferos,
além de 837 espécies de aves, 1.200 peixes, 330 de répteis e anfíbios
conhecidos. Abriga 13% de borboletas, 35% das abelhas, 23% dos cupins dos
trópicos e milhões de insetos, conforme dados da WWF, Ibram e Ibama.
Trabalho
publicado na revista Nature, em 1997
(Constanza e colaboradores), indica que nas últimas décadas observou-se uma contínua
diminuição da biodiversidade. Alguns biólogos, em razão da expansão urbana e abertura
de novas áreas agrícolas, mencionam o risco de uma eliminação em massa tanto de
espécies vegetais quanto animais. Cerca de um décimo dessas espécies estão sob ameaça de extinção
decorrente de atividades humanas pela destruição de seus habitats.
A
transformação dos ecossistemas originais por ecossistemas padronizados de
monoculturas requer efetiva regulação de órgãos de fiscalização e controle. A
Eco-92, promovida pela ONU, no Rio de Janeiro, foi um ponto de partida para a
tomada de consciência ambiental da comunidade e de proteção da biodiversidade.
CERRADO E DESMATAMENTO
A ocupação
do Cerrado ocorreu em diferentes momentos e com velocidade acelerada. E uma das
principais causas de desmatamento do Cerrado, segundo o biólogo Bráulio Dias, é
a abertura de áreas de pastagens para criação de gado de corte. Nas duas
últimas décadas, os campos de soja substituíram definitivamente a floresta
milenar e a múltipla variedade de gramíneas. Para o professor. Altair Sales
Barbosa, da Universidade Católica de Goiás, “onde
houve modificação do solo, a vegetação do Cerrado não brota mais. O solo do
Cerrado é oligotrófico, carente de nutrientes básicos. Quando o agricultor e o
pecuarista enriquecem esse solo, melhorando sua qualidade, isso é bom para
outros tipos de planta, mas não para as do Cerrado. Por causa disso, não há
mais como recuperar o ambiente original, em termos de vegetação e de solo”.
Ao substituir a vegetação do
cerrado por outras culturas, altera-se o ambiente. O sistema radicular de
culturas como soja ou milho é extremamente superficial e pouco eficiente para a
recarga dos aquíferos comparando-se com a profundidade das raízes das plantas
do Cerrado. Com o passar dos tempos, o volume armazenado dos lençóis freáticos
diminui e o nível dos aquíferos é afetado.
Os últimos informes
científicos do INPE e do Monitoramento dos Biomas Brasileiros, 2008-2012, indicam
que o Cerrado havia perdido 48% de suas florestas e apenas 10% se mantêm como
áreas protegidas. A extensão desmatada varia de 8.172 km2, em 2003,
para 7.653 km2 (765.000 ha), em 2012. A média anual estimada de
desmatamento é superior a 7.000 km2, equivalente a uma vez e meia a
área do DF.
(gráfico) Evolução do desmatamento/DF
- série 2003-2012
Km2: 8.172 8.906
4.822 3.506 4.447
3.757 2.997 3.724
7.416 7.653
Anos: 2003 2004 2005 2006
2007 2008 2009
2010 2011 2012
Fonte INPE
Contudo as informações
sobre o desmatamento no DF são imprecisas. Sequer existem dados disponíveis e
consolidados sobre as áreas desmatadas para a produção de cereais, para a
agricultura familiar, horticultura, avicultura, bovinocultura e seu impacto
sobre a biodiversidade. A observação empírica e o processo de ocupação contínua
pela expansão urbana indicam claramente que, excetuando-se o Parque Nacional, o
Parque da Cidade, parte do Jardim Botânico e outros 70 pequenos parques, as
áreas do DF estão abertas à ocupação e ao parcelamento cujo controle parece
estar fora do alcance da administração pública.
A
disponibilidade de espaço físico que, em 1960, era de 40 mil metros quadrados
por habitante, reduziu-se, em 2014 para 2 mil metros quadrados. Contabiliza, na
expansão urbana, mais de 500 condomínios irregulares, 850 hectares do Noroeste,
17 mil hectares da DF-140 para 900 mil pessoas, além da área recém-divulgada
para mais 90 mil habitantes na Samambaia. Somam-se a isso, o transbordamento
contínuo da Ceilândia, do Gama, do Recanto das Emas, do Itapoã e o povoamento
acelerado das margens das rodovias federais e distritais que atravessam o DF.
São variadas formas de desmatamento sutil aliadas às queimadas anuais que
atingem a biodiversidade destruindo florestas, soterrando nascentes de água, expulsando
animais.
Um incêndio
florestal no Cerrado mata, em poucas horas, milhões de vidas, eliminando dezenas
de espécies de insetos, como aranhas, grilos, gafanhotos, moscas, abelhas e
similares. Carbonizam-se cobras, lagartos, lagartixas e pequenos animais, destroem-se ninhos de pássaros. Desnuda-se o
solo e desfolham-se as árvores prejudicando a captação de águas da chuva e a
infiltração para recarga dos aquíferos. Acentuam-se a erosão e o assoreamento
de córregos e rios. O processo de esterilização em curso faz parte da
progressiva extinção do cerrado. Cunhou-se uma expressão repetida
frequentemente na imprensa: a cidade cresce e o Cerrado desaparece.
Além da redução da biodiversidade, os efeitos das
queimadas são ainda mais graves. O engenheiro florestal, Tasso Azevedo,
ex-diretor do Serviço Florestal Brasileiro, fez um cálculo sobre o
desmatamento. Segundo sua análise, em 2012, foram emitidos 166 milhões de
toneladas de gases de efeito estufa. E acrescentou: "Se o Cerrado fosse um
país, estaria entre os 50 que mais poluem".
A devastação
do cerrado pelo desmatamento se faz duplamente, na superfície e no subsolo. Na
superfície, pela retirada do verde que absorve o gás carbônico, capta águas da
chuva e irriga o ar. No subsolo pela erradicação das plantas e das gramíneas
cujas raízes profundas canalizavam águas para a recarga dos aquíferos. Em
outras palavras, o deserto substitui a biodiversidade. Para isto é preciso
preservar a vegetação do Cerrado que entende de água há milhões de anos.
Vale lembrar que os rios São Francisco e Paraguai nascem
no Cerrado. A Hidrelétrica de Itaipu não existiria sem as nascentes do Cerrado.
Da Lagoa Bonita, na Estação Ecológica de Águas Emendadas, no Distrito Federal,
a água vai se juntar a pequenos córregos para formar o Rio Paraná. Oito bacias hidrográficas
entre as 12 mais importantes do Brasil têm suas nascentes no Cerrado. A
devastação vegetal é o começo da desertificação. "O solo seca, a
capacidade de armazenar água diminui e a quantidade de água disponível tanto
para a região do cerrado quanto para o restante do Brasil vai diminuir",
completa Jorge Werneck Lima. Das 300 cabeceiras de córregos e rios do DF cadastradas
pelo Instituto Brasília Ambiental (Ibram), apenas 162 são monitoradas. Destas,
só 47 estão protegidas por cobertura vegetal e 51 sofrem graves ameaças
ambientais, com o desmatamento, o lixo e o esgoto.
O Ibram estima que existam mais de mil nascentes
espalhadas pelo DF, mas não sabe sequer a localização de 700 delas. Apenas 300
constam no cadastro do Instituto e só 162 são constantemente monitoradas porque
participam do programa Adote uma nascente.
Mesmo entre as adotadas, há aquelas em situação precária.
BIODIVERSIDADE E ÉTICA AMBIENTAL
Todas as
espécies têm um valor intrínseco, pois representam a vida de forma peculiar. A
vida de qualquer ser origina atitude e comportamento ético, de respeito à sua
existência como parte de um conjunto. O filósofo australiano John Passmore
(1914-2004) tratou o tema da ética ambiental em seu pioneiro livro Man’s Responsibility for Nature (Duckworth,
Londres, 1974). Todas as formas de vida estão ligadas por um fio existencial
tecido pela natureza. Esse fio existencial é contínuo. Uma vida se comunica com
outras vidas, depende de outras vidas, alimenta outras vidas.
A ética
ambiental regula a distribuição da riqueza natural representada pela vida entre
todas as espécies vivas. Diante disso, como propor soluções para nossos
problemas ambientais mais urgentes, como poluição, conservação da riqueza
natural, preservação de áreas relativamente intocadas, produção de alimentos,
queima de combustível fóssil e superpopulação? O planejamento familiar para o
controle demográfico é ainda um tabu. A solução parece estar na convivência
respeitosa com todas as formas de vida, sem entusiasmo cego pela natureza nem
liberalismo antropocêntrico irresponsável que a submeta aos caprichos humanos.
A espécie humana está despertando para essa solução orientada pelo princípio da
precaução, mas o caminho é longo e tortuoso. Não há dúvida: quanto maior for a
biodiversidade, mais fácil será a interdependência de todos os seres vivos.
É importante
notar que, no uso da riqueza armazenada na biodiversidade, cada espécie viva
tem sua função no ecossistema. O papel dos predadores, a espécie humana
incluída, é regular a reprodução de presas e garantir o equilíbrio ambiental
para que todas as vidas cumpram sua função. Observa-se, no comportamento de
quase todas as espécies, o uso direto e imediato de bens necessários à
sobrevivência e à reprodução e, ao mesmo tempo, o armazenamento de comida para
dias futuros. A disseminação de sementes pelos pássaros, o enterro de ossos por
cães e lobos, ou toneladas de carne em frigoríficos são comportamentos que
revelam preocupação pela sobrevivência.
A
conservação da diversidade biológica tornou-se uma inquietação global. Ações
continuadas e mais eficazes para garantir a conservação da diversidade
biológica ainda esperam por políticas públicas e investimentos mais generosos.
Esta atenção
global da qual o Brasil participa precisa ser adotada na prática de forma
coordenada pelo governo em suas três instâncias – federal, estadual e municipal
-, pelo setor empresarial e pelas organizações sociais em defesa da vida.
Dentre as principais sugestões e ações emergenciais
constantes de documentos oficiais e de organizações ambientalistas não
governamentais nacionais e internacionais mencionam-se o desmatamento zero do
Cerrado com vistas ao planejamento integrado para ocupação do bioma.
Recomenda-se o apoio intensivo técnico e financeiro aos programas de
recuperação de áreas degradadas de iniciativa governamental ou de associações
da cidadania. A restauração de áreas degradadas ou arborização intensa de
margens de rodovias ou corredores vegetais poderia ser conseguida em poucos
anos com a geração de empregos verdes por trabalhadores treinados para o
cumprimento dessa atividade.
Em resumo, a biodiversidade é a garantia da
interdependência de todos os seres vivos, de sua sobrevivência e reprodução. A
destruição de um bioma acarreta uma perda em cascata de outros biomas que
compõem um integrado sistema do planeta no qual as vidas estão conectadas. A
espécie humana não é a única no planeta, nem a mais numerosa. Pelas leis providenciais
da evolução, a espécie humana apareceu num momento em que poderia se reproduzir
e se consolidar. A atitude mais prudente é preservar os estoques desse imenso
armazém da biodiversidade disponível a todos os seres que dela participam.
Como será o planeta Terra se viver nele uma única
espécie de predadores denominado homo
sapiens? Continuará ser predadora, e sabemos, já hoje, quem serão as
presas.
É melhor para a espécie humana, e para todas as
espécies vivas, preservar a biodiversidade e aceitar humildemente que ela é
apenas um habitante da biocomunidade.
Brasília, 22 de março de 2012
Dia Mundial da Água
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