(Foto, Sítio das Neves, DF, Eugênio Giovenardi)
Há quarenta anos um pedaço do bioma Cerrado se pôs no
meio de meu caminho. Éramos desconhecidos um para o outro. Foi o Cerrado que se
dirigiu a mim. Sua mensagem me fascinou.
O invisível nele me atraiu mais do que o visível que
eu podia ver. Seu grito inaudível foi mais forte do que eu podia ouvir.
Aprendi a olhá-lo e a vê-lo. Aprendi a escutá-lo e
ouvi-lo. Aprendi a viver com ele para compreendê-lo.
A primeira lição que o bioma Cerrado me deu foi
humilhante e dolorosa. Eu pertencia, disse-me, à família de predadores mais
audaz, mais insensível, mais imprudente e mais arrogante chamada espécie
humana. E para cúmulo das desgraças e desastres traz consigo uma confiante arrogância
tecnológica para consertar a alto custo os erros que podem ser evitados.
Compreendi que eu mesmo dera demonstração de predador ignorante
ao introduzir, afoitamente, árvores e animais inadequados (eucaliptos e vacas, em
lugar impróprio), conforme confessei em meu livro A saga de um Sítio.
Olhei, então, para as árvores retorcidas. Entrei pelas
grotas secas que, no período chuvoso, despejavam toneladas de água e terra no
Ribeirão das Lajes. Consternado, naquele agosto de 1974, nada pude contra o
fogo a devorar plantas, expulsar aves, carbonizar pequenos animais, cobras e milhões
de insetos.
Arrasado o solo, um resignado espelho de água refletia
o azul do céu. A água desprotegida refletia os cristais do oceano azul de cima.
Vi a água cristalina.
Olhei para trás. Vi uma trajetória de 300 anos. Uma
caravana de predadores em marcha forçada. Cortavam árvores. Queimavam campos e
florestas. Matavam aves e animais. Construíram a economia da destruição, do
desperdício, do abandono, receita eficaz para fazer um deserto. Os fazedores de
desertos, como os definiu Euclides da Cunha, atacaram a alma do Cerrado: a
água. As águas se retiraram ou morreram por falta de árvores.
Compreendi que este bioma tinha aqui duas estações: a
chuvosa e a seca. A organização física das árvores, determinada pela lei
biológica, administra com eficiência as condições das duas estações. As árvores
se abastecem de água durante o período chuvoso e devolvem à atmosfera milhões de
litros durante os meses de estiagem.
Hoje, temos duas estações: a seca e a mais seca. As
chuvas que antes se abrigavam nas cobertas espessas das árvores, hoje, disparam
velozes para os rios e depositam neles a terra desprotegida. A água que jorrava
de milhares de nascentes, agora virá de longe, cara e suja. E, nesse ritmo,
estamos consolidando o deserto urbano e rural. É mais adequado ao deserto
existente autorizar a plantação de edifícios de 15 a 30 andares nas cidades
satélites do Distrito Federal do que incentivar o plantio de árvores.
Quarenta anos de convivência com o Cerrado me ajudaram
a compreendê-lo e a ele me associar.
Compreendi sua mensagem: devolver-lhe as árvores para
reviver as nascentes de água.
Passaram-se quarenta anos de convivência. Protegi
pacientemente a arborização nativa captando e detendo a água da chuva em grotas
e socavões. Em quarenta anos, o deserto reverdeceu. As árvores retorcidas
testemunham a depredação cometida. As grandes árvores que se elançam à altura,
copadas e floridas, atestam que se pode recuperar desertos.
As mensagens que recebo ao entrar no pedaço de cerrado
que me acolheu, me dão a certeza intuitiva, empírica e científica de que se
pode recuperar todos os desertos construídos pela mão do predador dotado de
cérebro inteligente, ironicamente alcunhado de homo sapiens.
Estou comprometido com este minúsculo pedaço de
cerrado. Ele recuperou a paz vegetal em apenas quarenta anos. Nele, todas as
formas de vida, e são milhões, têm os mesmos direitos à sobrevivência e reprodução
como determina a lei da interdependência de todos os seres vivos.
Nada mais simples para salvar a vida existente no
planeta do que arborizar cada metro quadrado de chão disponível.
O Cerrado me ensinou que todos dependem de todos, que
a vida depende da vida. E a vida é um fruto que pende da árvore.
2 comentários:
Eugenio, amigo!!:
Leí, comprendí, aprecié tu decir y sentir en 40 años de convivir en y con el Cerrado.
Correcta aplicación de la constatación terrible de Euclides da Cunha: "Los hacedores de desierto".
Recordé o Sitio das Neves, desfilando imágenes...
Sin duda, supiste tener ojos para ver, oídos para escuchar los mensajes de la naturaleza y, sobretodo, espíritu singular para aceptar los retos, los desafíos destinados a recuperar la armonía perdida.
Se cumplió el decir del viejo Marx, si en tu relación con la naturaleza no impera el trabajo alienado, al transformarla, te transformas a ti mismo.
Abrazo a todo sí
Jaime
Gracias, Jaime.
Esta és la lucha que dignifica la especie humana y construye la paz entre los seres vivos.
Eugenio
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