(Biocomunidade do Sítio das Neves. Árvores e água, eis o segredo. Foto: Eugênio Giovenardi)
Eugênio Giovenardi, escritor, ecossociólogo, acadêmico do
Instituto Histórico e Geográfico do DF e membro do ICOMOS/UNESCO.
O dom da palavra escrita e falada, até hoje exclusivo
da espécie humana, transmite conceitos, elabora mitos, cria ficções, espalha
mentiras, camufla a realidade, divide e une as pessoas.
Nos últimos tempos, os cidadãos ouviram expressões
como contabilidade criativa, recursos não contabilizados, fuga de capitais. Em
relação à surpreendente escassez de água nos reservatórios e irregularidades
das chuvas, autoridades administrativas diagnosticam stress hídrico. Nesses
dias de racionamento no Distrito Federal, fala-se em crise hídrica. Na verdade,
o que há é uma crise histórica de gestão da abundância de água. Parece que não
sabemos o que fazer com tanta água. As inundações pelo país que o digam.
O fato de termos 12% da água doce do planeta e rios
que atravessam o país, a gestão do fornecimento de água à população não se
tornou motivo de planejamento nem prioridade para os governos.
Talvez nunca se tenha feito com seriedade a relação entre
crescimento da população, aumento do consumo de água e a inelasticidade da
oferta. O consumo aumenta sem aumentar a oferta. Oferta não significa apenas
construir aquedutos para retirar água de reservatórios e levá-la às torneiras.
Como se noticiou amplamente, nenhum reservatório está com sua capacidade plena.
Gestão da água é também estar preparado para enfrentar
imprevistos ou irregularidades climáticas. Mas as medidas tomadas durante a
escassez de água têm efeitos de curto prazo e serão esquecidas ao se normalizar
a situação de emergência. A gestão do fornecimento de água à população do DF, já
na casa dos três milhões e com crescimento desordenado, deve obedecer a um
plano consistente para os próximos 40 anos.
Estima-se que, em dois anos, o DF terá mais 140 mil
novos habitantes. A água do planeta é a
mesma de milhões de anos. As chuvas é que podem ser irregulares e é difícil
fazer previsões. O certo é que a população consumidora cresce onde há e onde
não há água. Se não se pode prever com segurança o volume de chuva de cada ano,
é possível calcular o aumento da população e suas necessidades de água. É
urgente e imprescindível preparar a população para captar a maior quantidade de
água no período chuvoso. São tímidos ainda os projetos de adaptação dos
edifícios da cidade para coletar a água gratuita da chuva. Na contramão da
oferta de água, os desmatamentos e ocupações irregulares de áreas de proteção
ambiental continuam sem uma constante ação preventiva e corretiva da
administração pública.
Ações emergenciais não criam novos comportamentos,
apenas acomodam temporariamente a forma de usar a água. A participação de
outros órgãos como a Secretaria de Agricultura, numa situação de emergência, no
sentido de orientar os agricultores na melhoria da eficiência do uso da água
nas atividades agrícolas em curso, é de efeito temporário. São medidas intempestivas,
desconectadas do processo produtivo já em curso. Solicitar crédito para otimização do uso da
irrigação ou canalização de cursos de água diante da escassez é um contrassenso.
Nem os bancos, nem os produtores estão preparados para isso.
A preocupação dos gestores está centrada no
fornecimento de água dos reservatórios à população residente na cidade. Este é
apenas um item da gestão. O consumo de água relacionado com a energia
hidrelétrica é ocultado pelos gestores e ignorado pela população. O consumo de
água da indústria, do comércio e da agricultura é uma caixa preta. O consumo de
energia dos prédios públicos é uma incógnita. A Esplanada dos Ministérios, à
noite, é uma apoteose de luzes iluminando a burocracia adormecida.
O planejamento da gestão da água deve relacionar a
produção industrial e a de alimentos com a capacidade da região de fornecer o
volume de água necessário. A vocação territorial da produção de alimentos deve
ser compatibilizada com a oferta de água para que se obtenha o equilíbrio entre
oferta e demanda. Este equilíbrio é o conceito básico da produção econômica
ecológica.
A criação de gado no DF só poderia ser permitida com
técnicas de manejo ecológico que garantam pelo menos a reposição da água
consumida pelo rebanho num ciclo produtivo. A alta produtividade da soja no DF
não é argumento inatacável se os aquíferos se esgotam e a recarga não acontece.
Um núcleo central de planejamento da gestão da água deve
estabelecer para diferentes setores produtivos, cujas características diferem
uns dos outros, quais são adequados diante da escassez de água.
Reuso, captação de águas pluviais e reflorestamento são
elementos fundamentais na gestão do fornecimento de água à população. Onde
produzir, quanto produzir, com quanta água, a que custo e para quantos, são
questões fundamentais de planejamento que os gestores da água têm que
responder.
31.1.2017
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