A mulher com quem convivo há quarenta e quatro anos, não
ininterruptamente, pois o próprio tempo mutante, o espaço e as circunstâncias
humanas conspiram contra a convivência linear, não é minha.
A mulher com quem se convive também é definida como esposa
(do latim spondere) que responde afirmativamente ao compromisso com o varão;
consorte (no sentido de consorciar) do contrato social; cônjuge na caminhada (jungir
com); companheira que comparte do pão (cum panis). Lembrem-se de que o português
é a “última flor do Lácio”.
A mulher é o todo feminino da espécie humana, assim como o
varão é o todo masculino. Macho e fêmea fazem parte do código biológico da reprodução.
A lei da convivência entre os da mesma espécie, porém, é afetada por um pronome
possessivo.
O pronome possessivo “minha” esposa ou “minha” mulher deriva
dessa resposta dada ao homem forte, viril, varão. Resposta, na lei biológica,
significa que a mulher aceitou ou foi submetida à fecundação. O ato da fecundação
não gera direito de propriedade. As diferentes culturas, ao longo do tempo, compuseram
rituais distintos para essa resposta.
O pronome possessivo se generalizou na prática da
propriedade privada sujeita à defesa incondicional, à pilhagem, à alienação, ao
roubo. O possessivo não é absoluto nem intransferível. Pode-se dar toda ou
parte da propriedade ou simplesmente desfazer-se dela, abandoná-la. Ou desejar
possuí-la. Ou destruí-la.
Pensei longamente nesse pronome possessivo durante os doze
dias em que a mulher com quem convivo por mais de quatro décadas permaneceu na
UTI de um hospital entre a vida e a morte.
Que sentido tem o pronome possessivo em se tratando de vida?
O possessivo se refere a que aspecto da vida? O que pode ser meu do mistério
vida alheia, vida de outro ser? O que fica da vida compartida, consorciada? Até
onde ou em que ponto a lei, os códigos da convivência participante da vida se
confundem com as leis biológicas que separam uma vida da outra?
Duas vidas paralelas caminham lado a lado para separar-se no
infinito. Um infinito intemporal, súbito, imprevisível. O pronome possessivo é
uma deturpação do mistério vida. A convivência, na singeleza desse mistério
vida, parece-me o privilégio transcendental dos seres vivos que se reconhecem
no olhar e nas palavras que brotam de seus pensamentos.
A vida compartida, sem a diatribe do pronome possessivo, é a
expressão mais generosa da liberdade de ser, de estar, de viver e de
reintegrar-se no universo.
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