terça-feira, 30 de setembro de 2014

DEFAUNAÇÃO

(Foto: Eugênio Giovenardi, Sítio das Neves)

A preocupação ecológica mais em voga de administradores e políticos conscientes, e mesmo de ambientalistas, refere-se ao desmatamento com fins de produção de alimentos e urbanização.
A perda das florestas da Amazônia e do Cerrado associada à destruição quase total da Mata Atlântica ao longo de séculos, o aquecimento regional e global, o secamento de nascentes e córregos estão relacionados sistemicamente ao desaparecimento gradativo da fauna aquática e selvagem.
Animais que perderam seu habitat e sua comida são surpreendidos em plena rua urbana, nas garagens de edifícios, no interior de casas e apartamentos. Esses são os que sobraram.
Poucos sabem ou percebem o desastroso fenômeno da defaunação, isto é, a extinção de aves, animais de terra e anfíbios. Abatem-se árvores, queima-se a madeira, matam-se ou expulsam-se os bichos, limpa-se a área, secam-se nascentes e córregos. Inicia-se a desertificação.
Nos últimos dez anos, na reserva Sítio das Neves, transformada em Área de Preservação Permanente, tenho percebido que houve um acréscimo de vidas selvagens. Novos habitantes, expulsos de outros lugares, descobriram este refúgio e aqui se abrigam para a sobrevivência e reprodução. Entre os novos moradores estão o jacu, a curicaca, o tucano, o coati, o ouriço, o gato-do-mato, o tamanduá-bandeira. Vieram fazer parte da biocomunidade na qual já viviam o macaco-prego, o sagui, o mão-pelada, a paca e outros de menor porte.
As áreas vizinhas estão depredadas, com sistemas primitivos de exploração, com circulação intensiva de pessoas, automóveis e máquinas, além de caçadores. Esse ambiente tumultuado não é propício à vida selvagem. Os bichos gostam de silêncio e tranquilidade para se reproduzir e sobreviver regidos pela lei irrevogável da interdependência dos seres vivos.
A Reserva Legal, obrigatória em todas as propriedades, em razão de pequenas áreas, nem sempre é suficiente para a preservação da fauna. Os serviços de extensão rural deveriam, além de engenheiros agrônomos e técnicos agrícolas, dispor de um serviço ambiental para orientar os agricultores a preservar de maneira comunitária pequenos bosques para a fauna local. Corredores ecológicos ligando propriedades, com estímulos governamentais, têm sido sugeridos por ambientalistas, mas pouco se fez. Por falta de orientação e vigilância, os condomínios rurais, a cada dia mais frequentes, são verdadeiros corredores de destruição da fauna e da flora.
Caminho durante horas pelo cerrado de meu Sítio das Neves, área de preservação sistêmica. Vejo, ouço e fotografo a biodiversidade. Variedade de flores e frutos alimentam abelhas, moscas e lagartas. Aranhas fiam suas armadilhas. Insetos saltam à minha frente. Pássaros voam vigilantes e cantam ao redor de seus ninhos.


Hoje, a ciência ensina: as árvores salvaram a vida do  planeta quando um gigantesco meteorito, há mais de 60 milhões de anos, subverteu a Terra. Hoje, tenho certeza: só elas poderão operar a salvação ecológica em benefício de todos os seres vivos.

29.9.2014

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

O PRECONCEITO ESTÁ VIVO

Por ter completado os primeiros oitenta anos, não tenho obrigação de votar. Mas como cidadão livre não escondo minha opinião.
 -------------------
Opositores à candidatura de Marina questionam sarcasticamente: será ela capaz de governar? Perguntaram isso de Sarney? De Fernando Henrique Cardoso? De Collor de Melo? Adversários em outra época não duvidavam de Lula? Importaram-se os eleitores com a inexperiência de Dilma eleita presidente na primeira aventura eleitoral? Todos eles chegaram ao governo. Todos eles governaram como nunca antes neste país.
Agora, volta-se a perguntar de Marina se ela será capaz de governar. O preconceito social disfarçado é usado por intelectuais, jornalistas, ex-companheiros de partido, opositores de esquerda, especialmente por quem não quer perder o poder. Esse mesmo preconceito é usado hoje por aqueles a quem essa mesma flecha fez tanto mal.
Marina, meio índia, meio negra, brasileira do Acre, nasceu no seringal amazônico. Como milhões de brasileiros leu a realidade do país sem saber ler. Sem saber ler em livro, percebeu as raízes do Brasil. Ela foi capaz de vencer o analfabetismo, a leishmaniose, a malária, os grileiros da Amazônia. Foi capaz de ser vereadora. De ser deputada estadual. De chegar ao Senado Federal. Foi capaz de ser ministra do Meio Ambiente. Só Marina e José Lutzenberger foram, até o presente, ministros qualificados para o Ministério do Meio Ambiente.
Todas as contradições do Brasil estão reunidas em Marina. Ela é, entre todos os candidatos, a única que viveu essas contradições. Pede-se coerência a Marina. FHC pôde ser incoerente. O torneiro mecânico sindicalista Lula pôde ser incoerente. A ex-guerrilheira Dilma pôde ser incoerente.
O que exigem de Marina seus adversários? Que vença o imperialismo financeiro internacional? Qual governo o venceu? Que empobreça os bancos? Qual governo os empobreceu nesses últimos vinte anos? Que faça a reforma agrária? Quem a fez até hoje?
Por que Marina não será capaz de usar o dinheiro do orçamento para pôr comida no prato dos famintos da nova classe média? Por que Marina não será capaz de usar o dinheiro público para o salto de qualidade da educação fundamental? Por que Marina não será capaz de usar o nosso dinheiro do BNDS para equipar hospitais onde morrem brasileiros na fila de espera? Por que Marina não será capaz de humanizar nossas cidades com transporte decente, eficiente e confortável com menos queima de combustível fóssil? Por que Marina não será capaz de extirpar o câncer corruptor que espalhou metástase na Petrobrás? Por que Marina não será capaz de usar o dinheiro público para proteger nossas florestas, nossas árvores, nossos rios, nossas nascentes e fazer da agricultura ecológica uma resposta inteligente às mudanças climáticas?
Se o país teve generais no governo, um eminente sociólogo, um torneiro mecânico, uma ex-guerrilheira, por que não há de ter uma seringueira presidente do Brasil?
O preconceito poderá derrotar Marina, mas não apagará de seu rosto moreno os sinais inconfundíveis da realidade brasileira vivida por três quartos da população. E como milhões de brasileiros, Marina é frágil, doente e capaz.

Sim, Marina é capaz!

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

BIODIVERSIDADE VERSUS FOGO




(Foto: Cerrado em chamas)

Diário do filósofo Abelardo:
Numa discussão, o outro nem sempre tem razão, mas dirá sempre a última palavra.

A fauna e a flora do cerrado dependem da passagem do fogo. No Brasil, vamos ter que aprender a usar o fogo como ferramenta de manejo, agora que a lei prevê a prática para o bem do ecossistema.
Giselda Durigan, engenheira florestal, pesquisadora.

Reagi a propósito de afirmações da pesquisadora e engenheira florestal Giselda Durigan (revista Pesquisa-Fapesp, edição no. 219/220) sobre a relação entre queimadas e manutenção da biodiversidade em áreas de cerrado. Acompanho, há anos, discussões, debates e conselhos de especialistas em agricultura e zootecnia sobre “queimadas programadas” para alimentação do gado.
Os efeitos visíveis da passagem do fogo em áreas de cerrado apontam mais malefícios do que benefícios. Por um lado, há uma surpreendente brotação de gramíneas e flores, depois do fogo, para alimentação do gado em criação extensiva. Por outra parte, qual é o custo-benefício ecológico e ambiental com perda de milhares de espécies, com atraso no crescimento de pequenos arbustos, com expulsão e incineração de milhões de vidas visíveis e invisíveis que compõem a biodiversidade do cerrado? Acrescente-se a intensa secura do ar pela escassa evaporação arbórea durante o período da estiagem mais aguda e o declínio dos mananciais quando não seu desaparecimento em razão das queimadas.
A revista Pesquisa (Fapesp) no 222, por intermédio da pesquisadora Giselda Durigan, respondeu às dúvidas que expressei sobre suas conclusões, afinadas com as da especialista em savanas africanas Caroline Lehmann, da Universidade de Edimburgo, Escócia, a respeito do uso de fogo no cerrado como ferramenta de manejo.
Supostamente, segundo especialistas de savanas, a passagem do fogo mantém a biodiversidade do bioma. Informa a pesquisadora paulista que essa prática é levada com sucesso, há algumas décadas, na África e Austrália. Os propósitos imediatos, econômicos, ecológicos e ambientais, para a manutenção dessa prática não foram mencionados. Apenas indica que é para manter a biodiversidade das savanas de lá que têm semelhanças com o cerrado brasileiro.
A pesquisadora Giselda Durigan ironiza minha afirmação de que, em quarenta anos de observação, estudo e proteção da vegetação sistêmica nativa, houve um adensamento das árvores e da colcha espessa de gramíneas (capim) em toda a extensão da propriedade de 70 hectares (Sítio das Neves, DF). Também classificou o processo utilizado nessa propriedade como influenciado pelo “movimento conservacionista das últimas décadas, centrado nas florestas (mas não nas savanas) e nas árvores (em detrimento de capins, ervas e arbustos)”.
A investigadora justifica a prática do fogo: “Embora os cientistas que estudam o manejo do fogo ainda não tenham chegado a uma fórmula que seja ideal em todas as situações, há uma certeza: não queimar é a pior opção”. Se os cientistas não citados ainda estudam os efeitos do fogo sobre a biodiversidade, a afirmação de que “não queimar é a pior opção” soa leviana e imprudente.
Parece que um dos sucessos da pesquisadora é ter encontrado, na região pastoril de Santa Bárbara (SP), um exemplar do arbusto Galium humile, da família do café, nunca mais visto desde 1918. Ela atribui o achado às queimadas frequentes na área para estimular a regeneração de pastagens necessárias à alimentação do gado.
Todos os demais efeitos de uma queimada são relegados a um plano sem importância. A biodiversidade do bioma e da biota está intrinsecamente relacionada com a interdependência de todos os seres vivos com inclusão da espécie humana.
Por conhecimento geográfico e com vivência cerratense de 40 anos, observo que há diferenças climáticas entre regiões do estado de São Paulo e do Planalto Central onde se localiza do Distrito Federal. E é evidente a diferença entre áreas frequentemente queimadas e áreas protegidas em termos de flora, fauna e resistência dos mananciais.
As queimadas anuais de nosso cerrado, cuja função rudimentar e essencial é “limpar os campos” e provocar o surgimento imediato de algumas espécies de gramíneas para alimentação tradicional do gado zebu mestiçado, deixam sequela de milhares de mortes. Milhares de espécies da fauna e da flora jazem carbonizadas no chão.
Então, em que aspecto a biodiversidade é mantida? Não só as sementes de árvores e arbustos como ninhadas de pássaros, milhões de insetos e pequenos animais são incinerados. Agregue-se a essas perdas o volume de carbono que se espalha pela atmosfera e a queda do nível de umidade pela ausência de evaporação arbórea, sabendo-se que uma árvore pode jogar diariamente, no ar, dezenas de litros de água, segundo cientistas renomados como Antônio Donato Nobre.
Ao contrário do que insinua a pesquisadora Durigan em sua resposta, dezenas de espécies de capins do cerrado povoam densamente a área que preservo em consequência da opção de não queimar, situação diferente das propriedades vizinhas cuja opção é queimar.
Não só é constatada por especialistas a presença massiva de capins nessa área protegida, como a existência de bacuparis, muricis, mangabeiras, variedades de mirtáceas, curriolas, pequis, guarirobas, catolés, mama-cadela, araticuns, marmelo-do-cerrado, canelas-de-emas e orquídeas. Uma incontável variedade de flores e frutos silvestres garantem a comida de macacos-prego, saguis, quatis e mão-pelada.
Por convivência de 40 anos no Planalto Central, por razões biológicas, pela lei da interdependência dos seres vivos, por respeito à biodiversidade e pela sorte de fazer parte desta biocomunidade, continuo com a convicção de que não queimar é a melhor opção para todas as espécies vivas do cerrado.

1/9/2014