(Foto: Convivência moderna)
Moro num dos blocos da SQS 406, Asa Sul, em Brasília.
A maior extensão das áreas livres não ocupadas pelos 21 edifícios de
apartamentos se destina à circulação, à mobilidade e ao estacionamento de
carros. Na áreas verdes não há um só banco para sentar e pensar.
O cidadão pedestre compartilha com o automóvel esses
espaços quando ousa ou precisa deslocar-se a pé. A recomendação é: cuidado com
os carros!
Há 10 ou 15 mil anos, o agrupamento se origina da decisão
de pessoas de se instalarem num espaço de onde saem para pescar e caçar e a ele
voltam com as presas. A sobrevivência garantida pela proteção mútua.
Os urbanites, três séculos antes de nossa era, estabeleceram-se
às margens do Metauro, rio que atravessa a Úmbria, Urbino, na Itália. Com eles
nasceu, segundo estudiosos, a urbe. Os gregos criaram o termo polis (eõs) para
definir a convivência grupal de pessoas. A cidade, a polis, a urbe é o lugar da
convivência humana. É o agrupamento de lares que reúnem famílias, tribo, povo.
A cidade é para o compartilhamento da vida das pessoas. Civitas, de onde vem civilidade.
As ruas estreitas ligam as casas e os cidadãos. A
distância entre a urbe e o campo era vencida a passos. Do campo se extraíam as
proteínas vegetais e animais em estado natural. O cavalo, por mais de 10 mil
anos, foi o meio de transporte e mobilidade de pessoas e de artefatos, mais
tarde atrelado a carroças, coches, diligências e seges.
O desdobramento da revolução industrial, nos séculos
XIX e XX, transformou o habitat humano. Introduziu um novo personagem nas
cidades. As casas, os edifícios, os templos, as ruas submeteram-se à
autoridade, à ditadura, ao imperialismo do automóvel e à cumplicidade do avião.
A cidade das pessoas virou cidade do automóvel. A
polidez deu lugar à rispidez. O código de urbanidade transmudou-se em código de
trânsito.
De meu edifício, dirijo-me a pé ao posto do Correio,
distante 850 metros. Atravesso uma rua que divide o comércio local graças a um
semáforo que dá preferência aos automóveis. De nada adianta oprimir o botão
localizado no poste, pois ele está programado para servir o trânsito de carros.
O pedestre espera, faça sol ou caia chuva.
O ir e o vir do pedestre são controlados pelo código
de trânsito de automóveis. Brasília, imitando costumes de cidades civilizadas de
países europeus, concedeu a seus habitantes o direito de passagens de pedestre.
Quem determina o lugar dessas passagens é o Detran, não o conselho de cidadãos.
Em cruzamentos de vias, onde os carros tomam distintas
direções, há semáforos que obrigam à parada total do veículo. Nas passagens de
pedestres, a segurança do cidadão depende da polidez e da urbanidade do
condutor.
Brasília tornou-se referência nacional com a
implantação de passagens de pedestres e espalhou-se a informação de que os
condutores brasilienses respeitam o cidadão a pé. Mais e mais a cidade de
Brasília se entope de automóveis e seus condutores pretendem chegar aos mesmos
pontos ao mesmo tempo. A impaciência, o nervosismo, a pressa e o poder do carro
estão mudando a alma do condutor.
Postei-me, dias passados, em pontos diferentes,
próximos a algumas passagens de pedestres, para averiguar o grau de urbanidade
dos condutores. Nesses locais, não havia semáforos nem câmeras fotográficas.
Voltei a casa com sentimentos mistos de decepção e uma
leve esperança com risco de ser frustrada. De cada quatro condutores que transitavam
em sentido oposto, em todos os pontos de minha observação, dois apenas deram ao
pedestre pleno direito de chegar ao fim da passagem. A outra metade, ou não
parou ou arrancou quando o pedestre havia alcançado o meio da rua.
Brasília tem que recalcular sua posição na régua da
referência nacional como cidade que respeita o pedestre. Em ritmo veloz, o
automóvel está levando os condutores a comportamentos desurbanos. A convivência
urbana transferiu-se para as filas duplas dos engarrafamentos cotidianos ao
longo de largas avenidas e viadutos nem sempre necessários.